Roberto Sadovski

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Opinião

Como ignorei o hate e dei uma chance ao cinema vibrante de 'Emilia Pérez'

O que começou como ruído tornou-se, por fim, caos. A atriz Karla Sofía Gascon conseguiu, de forma muito pública e estridente, pulverizar a campanha de "Emilia Pérez" para o Oscar. Foi - ou melhor, está sendo - uma demonstração sem igual de mentiras, grosserias e preconceito, repetida a cada oportunidade que ela vem a público engrossar um pedido de desculpas torto. Uma autoimolação que parece não ter fim.

A comoção é o ápice de meses em que "Emilia Pérez" foi de grande promessa do ano a filme mais odiado da temporada. Após sua estreia no Festival de Cannes, onde foi aclamado como um dos grandes concorrentes do evento, essa mistura de drama, musical, comédia e fita policial tecida pelo diretor Jacques Audiard entrou numa espiral descendente que viu a boa vontade vertida - não sem fundamento - em fúria.

Antes das palavras de Gascón, respondendo de forma desconexa à publicação de tuítes em que ela demonstra clara inclinação racista e islamofóbica. Distribuindo fel a imigrantes, a ações de diversidade e ao próprio Oscar, ela já havia, em uma malfadada entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, voltado sua metralhadora acusatória à equipe do brasileiro "Ainda Estou Aqui". Não deu muito certo.

Karla Sofía Gascón e Zoe Saldaña em 'Emilia Pérez'
Karla Sofía Gascón e Zoe Saldaña em 'Emilia Pérez' Imagem: Paris

Audiard, por sua vez, foi deselegante ao associar a língua espanhola a "idioma de pobres e imigrantes" e em nenhum momento contestou a afirmação de membros de sua equipe que eles não haviam encontrado atores mexicanos de talento para estrelar o filme. O estado das coisas hoje é mais ou menos esse: a Netflix abandonou a campanha de Gascón, que ainda concorre ao Oscar como melhor atriz, o diretor cortou laços com sua estrela, e os outros envolvidos testemunham o barco afundar.

Posto o caos, "Emilia Pérez" chega aos cinemas à deriva, ainda que despertando muito interesse, nem que seja na turma que precisa ver com os próprios olhos o circo pegar fogo. Audiard, autor de filmes brilhantes como "O Profeta" e "Ferrugem e Ossos", criou uma fábula, uma alegoria ambientada em um cenário de violência muito real - a ação destruidora dos cartéis mexicanos - e optou por retratar esse mundo com leveza insuspeita.

Em boa parte de sua metragem, ele surpreendentemente consegue. Estruturado como um novelão, carregado no melodrama e no exagero de toda sua composição - dos cenários e atuações à decisão bizarra de fazer da história um musical -, "Emilia Pérez" equilibra-se na combinação esquisita de comédia e violência para traçar a história de sua protagonista. Embarcar ou não na viagem fica ao gosto do freguês - de minha parte, subi a bordo com gosto!

Zoe Saldaña em 'Emilia Pérez'
Zoe Saldaña em 'Emilia Pérez' Imagem: Paris
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A trama dispara com o encontro do traficante Manitas, responsável por um dos cartéis mais cruéis do México, com a advogada Rita (papel de Zoe Saldaña). Seu pedido é uma surpresa: Manitas busca finalizar sua transição de gênero, precisa de um intermediário para viabilizar a operação, de documentos e de alguém que remova sua família do país após forjar sua morte. Reafirmar sua identidade de gênero é, em suas palavras, uma forma de ter, pela primeira vez, uma vida diferente daquela apontada pela violência na qual ele nasceu - e para a qual ele contribuiu sem hesitar.

Anos depois, Rita reencontra Manitas, agora rebatizada Emilia Pérez, que vive de forma suntuosa com os dividendos de sua vida de crimes. Existe, porém, um vazio: a distância de seus filhos, alocados há quatro anos na Suíça com sua ex-mulher (papel de Selena Gomez), que desconhece todo o plano. Emilia quer sua família reunida e, em seu idílio particular, se apresenta como uma tia distante de Manitas. Como forma de "redenção", cria uma ONG para ajudar na localização dos corpos de vítimas dos cartéis. É tapar o Sol com peneira e, por óbvio, não tem como terminar bem.

Deixando de lado (ou ao menos tentando) o comportamento absurdo de Karla Sofía Gascón e de Jacques Audiard, "Emilia Pérez" tem sido duramente criticado pela forma rasa com que tratou a transição de gênero de sua protagonista e, principalmente, por sua visão caricatural e eurocêntrica do México. Foi uma decisão insensível e vulgar? Sim - mas aqui preciso ser o literal advogado do diabo.

Selena Gomez em 'Emilia Pérez'
Selena Gomez em 'Emilia Pérez' Imagem: Paris

"Emilia Pérez" não é sobre transição de gênero. Não é também sobre a ação dos cartéis. Como a primeira cena já entrega - com Saldaña cantando e dançando nas ruas de uma Cidade do México entregue ao artificialismo -, Audiard criou uma farsa, uma alegoria baseada unicamente em sua percepção sobre violência, transexualidade, culpa e desejo. É cafona, exagerado e absolutamente inverossímil. É também único e surpreendente.

O cinema não foge de abordar temas pesados com a devida reverência. Mas não é regra e nem sua função. "Emilia Pérez" evita deliberadamente qualquer profundidade em seu discurso, com a mera sugestão de complexidade rapidamente engolida pelo clima de novelão e pelos números musicais. Se "La Vaginoplastia" é pura vergonha alheia, "El Mal" traz o peso dramático e a verve irônica que elevam o filme.

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Zoe Saldaña é, por sinal, o grande achado de "Emilia Pérez". Atuando como fio condutor, a atriz de ascendência dominicana e porto-riquenha empresta humanidade aos momentos mais desconexos da narrativa, compensando o exagero de Gascón (que não nega suas origens em novelas espanholas) e a falta de rebolado de Selena Gomez, que defende um papel inglório moldado em seu pouco domínio do idioma latino.

Karla Sofía Gascón em 'Emilia Pérez'
Karla Sofía Gascón em 'Emilia Pérez' Imagem: Paris

Se existe um caminhão de motivos para ignorar "Emilia Pérez" - e o hate tem uma dose cavalar de exagero -, ele encontra equilíbrio em sua disposição vibrante para entreter e, não raro, surpreender. Um filme não precisa abordar, ou mesmo resolver, os problemas do mundo. Muitas vezes ficamos tão focados em um "cinema de temas" que ignoramos a existência de uma história muito específica sobre personagens muito específicos. Em um recorte com começo, meio e fim, erguer uma bandeira é opcional.

Sublinhar o ruído levantado pelo filme - as polêmicas, o derretimento público de sua protagonista, as especulações sobre suas indicações ao Oscar - é movimento tão natural quanto abraçá-lo simplesmente como uma fatia de entretenimento. Não há certo ou errado. Só não dá para encarar "Emilia Perez" como tentativa, mesmo equivocada, de retratar a cultura ou as mazelas do México. Ele é tão mexicano quanto "Ratatouille" é francês.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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