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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como a nostalgia pode salvar a experiência do cinema

Fachada do New Beverly, cinema de Quentin Tarantino que abraça a nostalgia e os clássicos - Reprodução
Fachada do New Beverly, cinema de Quentin Tarantino que abraça a nostalgia e os clássicos Imagem: Reprodução

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O drama "Eu, Chistiane F." está de volta aos cinemas 40 anos depois de seu lançamento. É uma iniciativa ótima. Indisponível em streaming e há muito fora de catálogo em mídia física, o filme do alemão Uli Edel, como diz minha colega Flavia Guerra, continua chocante e relevante.

Seu impacto, vale ressaltar, é amplificado quando visto no cinema. Eu era moleque quando "Eu, Christiane F." chegou ao país como "filme maldito". Me lembro da polêmica em torno do lançamento e da comoção pela história da adolescente que, numa espiral decadente, conhece as drogas e as ruas aos 13 anos de idade.

São memórias fortes que existem por causa da experiência coletiva compartilhada por uma geração quatro décadas atrás. Se não fosse a aura em torno do filme, criada nas salas escuras em um país vivendo o fim de uma ditadura, pronto para abraçar o mundo moderno, com suas alegrias e suas chagas, dificilmente "Eu, Christiane F." teria se tornado cult ao longo dos anos.

UM SENTIMENTO PERDIDO

Já disse antes, vale repetir: o streaming é uma ferramenta fantástica, mas ela não cria lembranças cinematográficas. Por mais prático que seja assistir a filmes no conforto do lar, o que acontece desde a popularização do VHS nos anos 1980, existe algo especial na experiência de compartilhar uma obra audiovisual ao lado de estranhos.

Talvez seja a exigência da atenção em uma projeção sem pausa e sem interrupção. Talvez seja o ritual de sair de casa, pegar fila, escolher o lugar e acomodar-se com o único propósito de ser transportado a outro lugar, por duas horinhas que seja. Lugar de ver filmes ainda é no cinema.

Nos últimos anos, porém, algo se perdeu. O cinema perdeu um bocado de sua pluralidade para se tornar uma grande vitrine. É parte das mudanças que a cultura pop experimenta, e tudo bem. Eu gosto de meus super-heróis e das galáxias muito distantes e dos personagens animados. Acho válido que séries e marcas ajudem a manter os cinemas em pé, especialmente em um mundo pós-pandemia.

FERRAMENTA PODEROSA

Mas essa experiência corre o risco série de se afunilar e se fechar em bolhas. Como bem observou o cineasta James Gray, os estúdios precisam estar dispostos a perder dinheiro financiando filmes de menor pretensão comercial sob o risco de comprometer colocar o futuro. Se só existir espaço para propriedades intelectuais, em uma década o público do cinema será feito unicamente por consumidores de marcas.

Levar o público de volta aos cinemas é, portanto, o principal desafio que produtores e exibidores têm em mãos. Este ano vimos que filmes fora do auê das propriedades intelectuais tem espaço: "Top Gun: Maverick", filme de ação à moda antiga, por ser ancorado em um astro e não ser uma pecinha solitária de um produto cultural mais extenso (é continuação de uma aventura de quase 40 anos e só), pode se tornar a maior bilheteria do ano.

O principal motor para o sucesso de "Top Gun" é a nostalgia. Não só do filme com Tom Cruise. Hoje a nostalgia é ferramenta de marketing poderosa. Uma música, uma cena, um título - qualquer elemento que sirva como gatilho já ajuda a conquistar o público, a trazer gente de volta ao cinema. Com o público mais diverso, maior a chance de o cinema ser o que nunca deveria deixar de ser: um templo de estilos, ideias e caminhos diferentes.

PONTE AÉREA

O que me traz de volta a "Eu, Christiane F.". Existe um fator nostálgico que impulsiona um lançamento assim, um gancho enxergado pelo distribuidor que foi forte o bastante para justificar um relançamento. O problema é que, no Brasil, ideias assim são exceção, não regra.

Quando eu viajava para cobrir lançamentos de cinema com mais frequência, minha ponte aérea era de São Paulo com Nova York ou Los Angeles. Na agenda sempre achava tempo para visitar cinemas que traziam filmes antigos na programação - não só clássicos, mas filmes antigos que pudessem diversificar seu público.

A fórmula não é nenhum mistério. Colocar em cartaz filmes de qualidade comprovada, que tenham um apelo bacana e possam atrair apaixonados por cinema - aqueles que os assistiram em seu lançamento e também as novas gerações que só os conheceram no conforto do lar.

MEDALHÕES EM CARTAZ

Vez por outra, redes de cinema no Brasil fazem seus "festivais de clássicos", e raramente encontrei sessões vazia. Das aventuras de Indiana Jones à trilogia "Star Wars", além de medalhões como "O Poderoso Chefão", "De Volta Para o Futuro", "Uma Linda Mulher" ou "E.T.", sessões nostálgicas são ótimas para (re)acender o hábito de ver filmes no cinema.

O que falta aqui é diversidade e frequência. Em Los Angeles eu ia constantemente ao NUART, uma sala de rua com programação voltada para o cinema independente. Todas as sextas-feiras, porém, ele exibia um filme de apelo popular e nostálgico incontestável. Em sessões assim eu pude ver no cinema pérolas como "Perseguidor Implacável", "Bullit" e "Fugindo do Inferno". "A Estrada Perdida", de David Lynch, estava em cartaz esses dias. Há décadas, à meia noite de sábado, é garantida a sessão festiva de "Rocky Horror Picture Show".

O cineasta Quentin Tarantino também entende o valor da experiência no cinema. Eele é dono do New Beverly, também em Los Angeles. Sua programação, sempre com filmes exibidos em 35mm, é um deleite para os fãs de cinema.

Enquanto eu traço essas linhas, entre os filmes agendados para essa semana estão "Dark Star", primeiro filme de John Carpenter, "O Grande Golpe" de Stanley Kubrick e "Caminhos Perigosos" de Martin Scorsese. Sessões à meia noite e matinês com desenhos animados clássicos estão no cardápio. As salas estão sempre cheias.

VELHOS CONHECIDOS PELA PRIMEIRA VEZ

Só esse ano, para nos ater a datas emblemáticas, celebram 40 anos de seu lançamento "E.T.", "Das Boot", "Blade Runner", "Mephisto", "A Marca da Pantera", "Conan, o Bárbaro", "O Enigma de Outro Mundo", "Cliente Morto Não Paga", Poltergeist", "Jornada nas Estrelas II", "Rambo - Programado Para Matar", "Gandhi" e "Tootsie". Se não falha a memória, só "Pink Floyd - The Wall" ganhou sessão especial em um cinema de São Paulo com banda ao vivo.

Ir ao cinema é construir memórias. Dificilmente alguém lembra do impacto de filmes lançados diretamente em streaming. Mas não são poucas as pessoas que conheço com lembranças indeléveis de assistir algo moderno como "Vingadores: Ultimato" no cinema.

Vocês não imaginam a energia e a empolgação de uma sala cheia com "Os Caçadores da Arca Perdida" na telona! Para readquirir o hábito, nada melhor do que encontrar velhos conhecidos na sala escura. Nem que seja pela primeira vez.

Ah, em dois meses James Bond celebra seus 60 anos no cinema. "007 Contra o Satânico Dr. No" estreou no Reino Unido em 10 de outubro de 1962. Esse eu nunca consegui ver no cinema. Fica a dica.

Errata: este conteúdo foi atualizado
O filme de 1982 dirigido por Carl Reiner citado no texto se chama "Cliente Morto Não Paga" e não "Cliente Morto Não Para", como informado anteriormente.
O lançamento de "007 Contra o Satânico Dr. No", primeiro filme da franquia 007, completa 60 anos em 2022, não 50, como informado anteriormente

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL