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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quer saber? 'Águas Profundas', thriller sexy com Ben Affleck, é até legal!

Ben Affleck em "Águas Profundas" - Amazon Prime Video
Ben Affleck em 'Águas Profundas' Imagem: Amazon Prime Video

Colunista do UOL

18/05/2022 04h06

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Eu não sei o que pensar de Ben Affleck. Ele é brilhante em alguns momentos de sua carreira. Outras vezes prefiro fugir de qualquer coisa com seu nome.

Affleck como Batman nas mãos do Zack Snyder? Corra! Affleck mostrando que sabe atuar, como em "Garota Exemplar" e "O Caminho de Volta"? Opa! Affleck bizarramente incrível em "O Último Duelo"? Assino embaixo!

Que tal, então, Ben Affleck fazendo de conta que não fez um filme? Ele, seus parceiros em cena, estúdio, diretor, provavelmente até a moça do café. Todos fazendo a egípcia e fingindo que não é com eles. Como fica?

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Ana de Armas relaxa (!) em cena de 'Águas Profundas'
Imagem: Amazon Prime Video

Em um domingo desavisado, fui tentar descobrir. "Águas Profundas", que chegou à plataforma de streaming Prime Video, não teve campanha de marketing milionária. Sequer houve a chance de ser descoberto no boca a boca.

Este thriller erótico, sobra de uma era há muito esquecida, é a típica situação de despejo. Como aquele amigo indesejado, que estende a visita mesmo depois que você já vestiu o pijama, o filme foi simplesmente colocado porta afora sem muita cerimônia.

A média das críticas no famigerado Rotten Tomatoes era um desastre. Fui bater com os amigos, ninguém havia arriscado. "Ao menos pode render um texto bacana", pensei. Cá estamos.

Cá estamos, diga-se, estranhamente surpresos! "Águas Profundas" não é, por nenhuma métrica, um bom filme. Mas, ao longo de duas horinhas, ele me fez esquecer os boletos, a louça na pia, a roupa que precisava ser estendida.

Dava para colocar na conta do efeito "acidente em descida de serra", em que a gente diminui a marcha para ver o estrago, mas o desastre logo vira um ponto no retrovisor. Mas não é isso. Existe algo envolvente na trama mixuruca de "Águas Profundas".

O nome nesse fator X é Adrian Lyne.

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O diretor Adrian Lyne orienta Ben Affleck e Ana de Armas
Imagem: Amazon Prime Video

Voltando no tempo, até os nostálgicos anos 1980 (oi, "Top Gun"!), Lyne construiu sua carreira em cima de dois pilares. O primeiro, um estilo cafona e envolvente, uma mistureba de luz e fumaça que fazia de seus filmes mais rasteiros uma festa para os olhos.

Foi assim com "Flashdance", seu segundo longa, lançado em 1983. A trama irreal, sobre uma dançarina que quer ser bailarina enquanto trabalha em uma siderúrgica (!), ganhava estofo com o visual bolado por Lyne. A música tema de Irene Cara ajudou no status cult da empreitada.

Em seguida veio o fenômeno "9 ½ Semanas de Amor", que fez de Mickey Rourke um astro, lançou a carreira de Kim Basinger e ficou em cartaz em São Paulo por mais de um ano.

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Mickey Rourke e Kim Basinger em '9 ½ Semanas de Amor', fenômeno de 1986
Imagem: Fox

A salada de sexo light e abuso moral e sexual (em 1986 ninguém foi cancelado) era uma bobagem com zero substância, mas marcou Lyne como um diretor de temas "ousados". Ele, então, abraçou o rótulo com força.

Daí foi correr para o abraço. 1987 trouxe outro fenômeno na forma de "Atração Fatal"que serviu para mostrar a Michael Douglas (e a boa parte da plateia masculina da época) que traição é sempre uma péssima ideia. Ah, e transformou um guisado de coelho em peça de terror.

"Alucinações do Passado", lançado em 1990 (e meu favorito em sua filmografia), colocava viagem no tempo, Guerra do Vietnã, crise de identidade e metafísica no mesmo balaio. "Proposta Indecente", de 1993, foi mais um filme "polêmico" em que Robert Redford paga US$ 1 milhão por uma noite com Demi Moore.

A essa altura, o estilo de Adrian Lyne já parecia cansado. Ele ainda arriscou adaptar Nabokov com "Lolita" (1997) e colocou Richard Gere e Diane Lane como casal em crise no suspense "Infidelidade". O diretor, então, fechou a lojinha. Que permaneceu com as portas cerradas por duas décadas.

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Diane Lane e Richard Gere em 'Infidelidade', último filme antes do hiato de 20 anos de Adrian Lyne
Imagem: Fox

É fácil entender por que ele interrompeu a pausa. "Águas Profundas", adaptado do livro de Patricia Highsmith, traz todos os elementos que fizeram a base de seu cinema. Temos o homem emasculado (Ben Affleck), a mulher fatal-mas-nem-tanto (Ana de Armas), sexo light, crime e um clima cafona delicioso.

Affleck é Vic Van Allen, engenheiro aposentado milionário, que vive confortavelmente com a mulher, Melinda (Ana de Armas), e a filha. O relacionamento, um modelo na cidadezinha da Louisiana que eles chamam de lar, não é exatamente um primor.

Habitando quartos separados, ele tem uma relação aberta. Vic, um sujeito reservado, só observa enquanto Melinda, expansiva e divertida, acumula amizades que tendem a ficar mais íntimas. Quando esses "amigos" aparecem mortos, não é difícil imaginar sobre quem caem as suspeitas.

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Ana/Melinda e um amigo (Jacob Elordi) aproveitam a piscina: foge que é cilada!
Imagem: Amazon Prime Video

Adrian Lyne é esperto ao não fazer suspense sobre o autor dos crimes, divertindo-se muito mais em explorar a relação estranhíssima de seu casal de protagonistas. Absolutamente nada faz sentido no roteiro de Zach Helm e Sam Levinson. A trama vai assim, atropelando a lógica, até sua conclusão totalmente fora da casinha.

É compreensível que todos os envolvidos com "Águas Profundas" tenham simplesmente deixado o filme morrer. Primeiro, seu lançamento, em novembro de 2020, foi adiado pela pandemia para agosto de 2021. Depois para janeiro de 2022. Pouco antes da data, sumiu da agenda de vez, reaparecendo como um produto direto para streaming, pelo Hulu nos Estados Unidos e Prime Video no resto do mundo.

Quer mais complicação? Ben Affleck e Ana de Armas engataram um relacionamento romântico durante as filmagens, mas eles romperam no começo de 2021. Affleck reatou com Jennifer Lopez. Tenho cá para os meus botões que a dupla não mexeria um palito para divulgar o filme. Ficou por isso mesmo. Fim.

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Ana de Armas e Ben Affleck, o casal modelo (mas nem tanto) de 'Águas Profundas'
Imagem: Amazon Prime Video

Ninguém em Hollywood presta mais atenção no thriller erótico como gênero. A trilogia "50 Tons de Cinza", uma das maiores aberrações cinematográficas dos últimos anos, serviu para mostrar o quanto as tramas ficaram anacrônicas e patéticas.

Sua estrutura é uma cápsula do tempo que não cabe mais no cinemão, mesmo que exista espaço para reinvenção no mercado europeu e asiático. É o que Paul Verhoeven fez em "Elle" e "Benedetta". É o que Park Chan-wook fez em "A Criada"

Adrian Lyne, aos 81 anos, está ciente que os tempos são outros. É nítido que ele conduz "Águas Profundas" como um exercício em nostalgia. É bobo, é óbvio, mas em nenhum momento é vulgar ou enfadonho. Já Ben Affleck, à vontade como o macho perdedor, é a melhor coisa do filme. Para um domingão desavisado, tá valendo!