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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sidney Poitier: O Homem Que Mudou o Jogo

Sidney Poitier, o ator que alterou o curso da percepção racial no cinema americano - Reprodução
Sidney Poitier, o ator que alterou o curso da percepção racial no cinema americano Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

08/01/2022 06h01

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Havia uma certa euforia em Hollywood quando Sidney Poitier fez "Atirando Para Matar", filme de ação de 1988 em que ele dividia a cena com Tom Berenger. Longe das telas por mais de uma década, depois de dirigir e protagonizar a comédia "Os Espertalhões", com Bill Cosby e James Earl Jones, o ator voltava tranquilo, em um filme correto e empolgante.

O retorno era simplesmente a vontade de exercer sua grande paixão, que era atuar. Afinal, ali no final dos anos 1980 Sidney Poitier não tinha absolutamente mais nada a provar: ele já havia assegurado seu lugar na história do cinema.

O sucesso de Poitier, principalmente na década de 1960, não era algo trivial. Primeiro ator negro a ganhar o Oscar, por seu trabalho no drama "Uma Voz nas Sombras", de 1963, lhe colocara no centro de um movimento político e social que aos poucos alterava a percepção americana sobre raça, sobre força, sobre minorias. Pela primeira vez a comunidade afro americana olhava para a tela grande e se enxergava, não como coadjuvante em papéis estereotipados. Poitier era, então, um astro.

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Sidney Poitier em 'Um Voz nas Sombras', que lhe rendeu o Oscar de melhor ator
Imagem: MGM

Não foi o primeiro artista negro a receber a estatueta dourado. Essa honra coube a Hattie McDaniel, que em 1940 foi premiada como atriz coadjuvante por seu trabalho em "E o Vento Levou". Mas era uma América segregada, que a colocou sentada em uma mesa de canto, longe de seus pares, durante a cerimônia. Que a impediu de assistir ao filme em sua première em Atlanta, já que o cinema do evento não permitia a entrada de negros.

Sidney Poitier compreendia plenamente seu papel no jogo da indústria - e o poder de sua imagem. Era uma posição que lhe incomodava, já que havia a vontade de variar o personagem que geralmente aceitava, o homem negro idealizado, sem defeitos, em choque com o perfil racial que peitava as convenções no coração do movimento pelos direitos civis. Ainda assim, ele sentia que, como único astro negro com o nome no topo do cartaz, devia dar o exemplo e não abraçar estereótipos.

Ainda assim, entregou em 1967 um trio de filmes que abalaram a imagem do "negro submisso" que o país, principalmente os estados ao Sul, ainda carregavam. "Ao Mestre, Com Carinho", reprisado à exaustão na TV brasileira, o colocava em Londres como um professor substituto que ganha o respeito de seus alunos desordeiros.

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Poitier com Rod Steiger em 'No Calor da Noite'
Imagem: MGM

Os outros dois filmes, entretanto, deixaram uma marca ainda mais profunda. Em "No Calor da Noite", Poitier surge como o detetive Virgil Tibbs, um policial da Filadélfia envolvido em um assassinato numa cidadezinha do Mississipi. Em um lugar em que o racismo e a norma, Tibbs precisa se impor para resolver o crime em parceria com o xerife preconceituoso interpretado por Rod Steiger.

Seu terceiro filme em 1967 talvez tenha sido o mais efervescente em uma América que, pouco antes de sua estreia, ainda proibia em alguns estados o casamento inter racial. "Adivinha Quem Vem Para Jantar" coloca Poitier como namorado de Katharine Houghton - que é branca -, em uma noite que o coloca em choque com os pais da moça, interpretados por Spencer Tracy e Katharine Hepburn.

Os três filmes quebraram padrões e colocaram Sidney Poitier como um dos grandes astros de sua geração. Ele usou sua visibilidade não só para avançar a causa dos direitos civis nos Estados Unidos, mas também para pavimentar o caminho para outros astros negros no cinemão.

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A tensão - racial, social e familiar - de 'Adivinhe Quem Vem Para Jantar'
Imagem: Columbia

Antes dele, atores negros geralmente eram coadjuvantes com pouco impacto na trama dos filmes, o que facilitava o corte das cenas em lugares refratários a aceitar um protagonista que não fosse branco. Poitier mudou isso, abrindo espaço para atores como Morgan Freeman e Denzel Washington.

No cinema, Poitier estendeu seu alcance para atrás das câmeras, dirigindo uma dezena de filmes entre 1972 e 1990, inclusive a comédia "Loucos de Dar Nó", com Richard Pryor e Gene Wilder, que por anos foi o filme de maior bilheteria dirigido por um artista negro.

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'Atirando Para Matar' acabou com um jejum de uma década no cinema
Imagem: Touchstone

Eu conheci "Atirando Para Matar" no auge da febre das video locadoras, em que o lançamento em VHS estendia a visibilidade de um filme, e permitia que uma nova geração pudesse conhecer o trabalho de artistas notáveis sem ter de esperar uma reprise na TV.

Também em 1988, Poitier fez o suspense "Espiões Sem Rosto", com River Phoenix, e entrou os anos 1990 com fôlego renovado. Ele voltou seu olhar para a TV, onde trabalhou nas minisséries "Separados, Mas Iguais" e "Caçada Brutal" e meia dúzia de filmes produzidos para a tela pequena, em especial o drama "Mandela e De Klerk" e uma continuação de "Ao Mestre, Com Carinho".

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Poitier com Robert Redford no ótimo 'Quebra de Sigilo'
Imagem: Universal

Seu grande momento no cinema dos anos 1990 foi "Quebra de Sigilo", um thriller de espionagem que combinava ação e humor, em que ele divide a cena com Robert Redford, Dan Aykroyd, Ben Kingsley, Mary McDonnell e River Phoenix. É uma pérola, um filme pouco visto mas que traz um elenco afiadíssimo em uma direção inspirada de Phil Alden Robinson.

Toda a carreira de Sidney Poitier, entretanto, segue às escuras para quem não o conheceu nas sessões cinematográficas da TV ou como rato de video locadora. Ainda é possível achar "Uma Voz nas Sombras" e "No Calor da Noite" no canal MGM, dentro do streaming Amazon Prime - disponível com uma assinatura separada.

Para quem busca conhecer o magnetismo, o charme, o talento e o carisma de Sidney Poitier no Brasil, resta o thriller de ação "O Chacal", disponível na Netflix. É um filme decente e só, que coloca Bruce Willis como um terrorista, confrontando um ex-atirador do IRA interpretado por Richard Gere. Poitier é o diretor do FBI que tenta controlar a situação. Foi sua despedida dos cinemas. Morto em casa aos 94 anos, ele deixa um legado, desde sempre, imortal.