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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Maligno', de James Wan, é a melhor comédia involuntária do ano

Annabelle Wallis sonha acordada em "Maligno" - Warner
Annabelle Wallis sonha acordada em 'Maligno' Imagem: Warner

Colunista do UOL

10/09/2021 20h07

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"Maligno" me lembrou de meus 12 anos de idade. Época boa, em que eu peneirava as estantes da video locadora (a Vídeo Magia era praticamente minha segunda casa) para selecionar os filmes de terror mais podreira e assistir com a turma. Três fitas, pega na sexta, devolve na segunda.

Na época eu não dava muita trela para algumas coisas bem básicas, como estrutura narrativa, roteiro coerente, boas atuações, direção sólida. O que interessava era o gore, as mortes brutais, o sangue escorrendo e as gargalhadas que as cenas causavam. Adolescente é uma coisa estranha.

Provavelmente o mesmo pode ser dito de James Wan. Aposto que sua juventude foi igualmente florida, o que já podia ser atestado com o filme que o revelou ao mundo, "Jogos Mortais". Terrorzão bacana de 2004, foi o gatilho para uma série que já soma quase uma dúzia de filmes e revelou seu estilo de terror que mistura referências clássicas com ultra violência.

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Gabriel, lá no fundo, espreita sua próxima vítima
Imagem: Warner

Foi da mente de James Wan que o cinemão viu surgir o primeiro universo de terror compartilhado moderno, inaugurado com "Invocação do Mal" em 2013. Talvez retomar o gênero de forma mais crua estivesse nos planos desde sempre, mas só quando ele molhou os dedos em outras praias, e cravou dois filmes que faturaram US$ 1 bilhão - "Velozes & Furiosos 7" e "Aquaman" -, Wan teve liberdade criativa para retomar sua paixão sem nenhum freio.

O resultado é justamente "Maligno". A missão ali é simples: criar um novo ícone do terror, o que ele fizera com Jigsaw de "Jogos Mortais", e emplacar uma nova série de sucesso. A bola da vez aqui é Gabriel, um assassino deformado, de movimentos sobre humanos, que despacha suas vítimas com um troféu afiado como uma lâmina em meio a um banho de sangue e uma pilha de corpos.

Mas eu estou me adiantando. Depois de uma sequência inicial em que um grupo de médicos, nos anos 1990, parece lidar com um paciente monstruoso, o calendário salta para os dias de hoje ao focar em Madison (Annabelle Wallis, de... err... "Annabelle"), que está grávida e sofre nas mãos do marido abusivo.

É nesse ciclo de agressões que entra em cena Gabriel, uma entidade que se move pelas sombras e se livra do tal sujeito, deixando Madison ferida e traumatizada. Aos poucos, ela passa a exibir um comportamento quase simbiótico com o matador: paralisada, ela tem visões de outros assassinatos brutais no exato momento em que eles estão ocorrendo. Para a polícia, Madison passa de vítima a suspeita.

Essa relação de Madison com o seral killer, que revela-se uma entidade de força e agilidade descomunais, sugere um suspense sobrenatural emoldurado por cenas sangrentas e chocantes. James Wan, porém, não pode ver um tapete que já que puxar.

Sem entrar em detalhes, até porque spoilers são do mal, basta dizer que lá para a metade do segundo ato "Maligno" dá uma guinada de 180 graus com uma série de reviravoltas malucas. O que era um terror básico e até envolvente se torna um filme completamente alucinado e fora da casinha. "Bizarro" seria pouco para descrever. Sério. Se eu tentasse explicar aqui o que rola, seria um completo fracasso.

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O diretor James Wan ilumina o caminho no set de 'Maligno'
Imagem: Warner

Basta dizer que, quanto mais "Maligno" revela suas cores, mais se torna cômico. Tragicamente cômico. É como testemunhar um acidente violento na descida da serra: a gente quer logo deixar para trás, mas não tem como não reduzir a velocidade e tentar enxergar o estado lastimável das vítimas. "Ainda bem que não foi comigo", sopra o diabinho no ombro esquerdo.

Essa mistura é, para muitos, indigesta. Mas vai pegar pelo pescoço a turma que gosta do cinema trash, em que a lógica sai de cena e abre espaço para o estímulo sensorial puro. Não é terror, assim como não dá para se assustar com os filmes de Frank Henenlotter ("Basket Case", "Frankiehooker") ou com a série "Sexta-Feira 13". É horror físico sem a elegância de David Cronenberg, é o gore mais brutal sem a cola narrativa do giallo. É divertido. É engraçado. É tosco. EU já mencionei bizarro?

"Maligno" é, também, o programa perfeito para ser visto no cinema. No escuro fica mais fácil disfarçar as gargalhadas. Num mundo ideal, porém, ele estaria disponível em VHS, escondido nas prateleiras da locadora, esperando por um adolescente ávido por uma noite de cinema e diversão com os amigos. Seria uma noite bacana. Aos 12 anos a gente não sabe de nada mesmo.