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Roberto Sadovski

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

'O Legado de Júpiter': Até quando a cultura pop vai apostar em super-heróis

"O Legado de Júpiter", nova série baseada na HQ de Mark Millar e Frank Quitely - Netflix
'O Legado de Júpiter', nova série baseada na HQ de Mark Millar e Frank Quitely Imagem: Netflix

Colunista do UOL

08/04/2021 00h56

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"O Legado de Júpiter", adaptação da série em quadrinhos de Mark Millar e Frank Quitely, ganha seu primeiro trailer. Estreia em maio na Netflix. A prévia traz heróis em uniformes coloridos, batalhas entre seres superpoderosos, origens secretas e um enigma embalado em um mistério.

Digamos que, uns vinte anos atrás, o lançamento de algo como "O Legado de Júpiter", com super-heróis e efeitos especiais, seria um grande evento. Hoje, na segunda década do século 21, transportar personagens de gibis para outras mídias é uma terça-feira qualquer.

De forma alguma isso diminui a qualidade da obra de Millar ou de sua versão para o streaming. A familiaridade de todo o processo, porém, perdeu seu impacto. Super-heróis dominam a cultura pop há pelo menos uma década, desde que "Homem de Ferro" começou o Universo Cinematográfico Marvel e "Batman - O Cavaleiro das Trevas" tornou-se um fenômeno de 1 bilhão de dólares.

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Christian Bale em 'Batman - O Cavaleiro das Trevas'
Imagem: Warner

De lá para cá, o público ficou amortecido com o volume da oferta. Com os cinemas em pause por conta da pandemia do coronavírus, os serviços de streaming aumentaram a aposta em entregar o que sua audiência demanda. "O Legado de Júpiter", portanto, é a prova não da fadiga do conceito, e sim de sua consolidação.

Vamos voltar um pouco mais no tempo. Em 1978 Christopher Reeve imortalizou o Homem de Aço para uma nova geração com "Superman, O Filme". Os Estados Unidos mal havia saído da Guerra do Vietnã, e as feridas ainda cicatrizavam. A aventura dirigida por Richard Donner trouxe exatamente o tipo de herói que o país precisava: altruísta, honesto, de caráter ilibado. Nas bilheterias ficou atrás somente do musical "Grease".

Corta para uma década depois. Em 1989 Tim Burton fez de "Batman" uma fantasia gótica sufocante, com um herói equilibrado tenuamente entre vingança e justiça. O mundo era outro, mais cínico, mais sombrio, banhado por tons de cinza. O Homem-Morcego encarnado por Michael Keaton representava a dualidade de um mundo incerto dos papéis de mocinho e bandido.

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Tobey Maguire em 'Homem-Aranha'
Imagem: Sony

Os super-heróis na cultura pop sempre refletiram o estado das coisas. Nos quadrinhos a desconstrução dos arquétipos dos justiceiros coloridos começou ainda nos anos 1980, pertinho do lançamento de "Batman", com a série seminal "Watchmen", de Alan Moore e Dave Gibbons. Foi preciso algumas décadas para que o resto do mundo, que jamais abrira um gibi na vida, fosse educado em suas características primarias (estilo "Superman, o Filme") para depois experimentar sua desconstrução ("Batman" foi um ponto de partida).

Seres superpoderosos no cinema e na TV deixaram definitivamente de ser uma anomalia em 1999, quando "Matrix" fez de Keanu Reeves um super-herói para o novo século. "X-Men" escancarou as portas da mistura ficção científica com heróis dos gibis em 2000, e "Homem-Aranha" ganhou o mundo dois anos depois. O que era um acidente de percurso passou a fazer parte do zeitgeist.

Não é ao acaso que boa parte dos novos super-heróis, especialmente no streaming, abordem tramas que desconstruam sua imagem altruísta. Como reflexo do mundo do século 21, nossos "salvadores" se mostram, por trás das cortinas, demasiado humanos. Eles mentem, trapaceiam, cultivam projetos de poder, roubam, matam. Os "mitos" da ficção ganham nossa atenção por ser demasiado reais.

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Regina King em 'Watchmen'
Imagem: HBO

Por isso que, quando saímos das adaptações dos personagens das duas maiores editoras - Marvel e DC - a coisa fique tão violenta, tão subversiva. "Watchmen", da HBO, conseguiu o feito de dar ainda mais camadas à obra original de Moore e Gibbons, refletindo um mundo diverso e complexo. "The Umbrella Academy" fez de seus heróis uma família disfuncional que, entra uma e outra crise, precisa salvar o mundo. "The Boys" transformou a Liga da Justiça em maníacos homicidas e egocêntricos que precisam ser monitorados e detidos por pessoas ainda piores que eles.

Essa chacoalhada nos arquétipos dos super-heróis é o que mantém suas histórias interessantes. Existe, claro, espaço para os aventureiros de coração puro que lutam por todos nós - o sucesso de "Vingadores Ultimato" é a maior prova. Mas o público também quer ver seus heróis abraçando seu lado sombrio (como em "Liga da Justiça de Zack Snyder") ou equilibrando suas responsabilidades com a vida mundana (a nova série "Invincible" é um ótimo exemplo).

Mark Millar, por sua vez, entendeu há tempos que o futuro dos super-heróis em particular - e dos personagens dos gibis em geral - é como propriedades intelectuais. O roteirista escocês deixou sua marca na Marvel, em especial nas séries "Os Supremos" e "Guerra Civil". Mas aprendeu que ter o controle de suas próprias criações é o caminho do futuro.

"O Procurado", com James McAvoy e Angelina Jolie, foi um começo, uma adaptação até suave de sua série em quadrinhos violentíssima. "Kick-Ass" e "Kingsman" migraram com sucesso do papel para o cinema. Para encurtar o caminho, Millar assinou com a Netflix, e agora cria novos personagens e conceitos como HQs, mas já prontas para o tratamento live action.

"O Legado de Júpiter" é o primeiro fruto dessa parceria. É mais uma desconstrução dos super-heróis, com uma dose cavalar de drama familiar, violência extrema e ação blockbuster. O trailer sugere um caminho diferente dos quadrinhos, mas preservando seu conceito básico: uma nova geração pode herdar os poderes de seus pais, mas nem sempre sua responsabilidade. Super-heróis, pelo visto, definitivamente ganharam seu lugar.