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Roberto Sadovski

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Com 'Novos Deuses' cancelado, Warner segue errando com os personagens DC

"Novos Deuses", criação do rei Jack Kirby, não vai mais virar filme - Reprodução/DC
'Novos Deuses', criação do rei Jack Kirby, não vai mais virar filme Imagem: Reprodução/DC

Colunista do UOL

02/04/2021 17h47

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"Novos Deuses", que levaria para o cinema os personagens criados pelo mestre Jack Kirby pelas mãos de Ava DuVernay, foi cancelado depois de alguns anos em desenvolvimento. "The Trench", filme de terror baseado em criaturas apresentadas em "Aquaman", que estava sendo tocado por James Wan, também seguiu o caminho do dodô. Parecem exceções. Mas é a regra.

Ao longo dos anos, a pilha de projetos não realizados para o cinema com personagens da DC supera, de longe, os filmes que de fato viram a luz do dia. Os motivos são muitos. Falta uma liderança que entenda e conduza as propriedades intelectuais da editora nos corredores da Warner. Falta um plano. E falta, acima de tudo, entender a mina de ouro que eles têm em mãos.

Não foi sempre assim. Por anos os únicos super-heróis do primeiro time que chegavam ao cinema eram da DC - mais especificamente Superman e Batman. O primeiro ganhou tratamento VIP em 1978 com o clássico absoluto "Superman - O Filme", de Richard Donner. O segundo ganhou chance uma década depois em "Batman", que Tim Burton lançou em 1989.

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Michael Keaton em 'Batman', de Tim Burton
Imagem: Warner

Foram dois fenômenos que provaram haver espaço para seres fantásticos dos gibis na tela grande. "Superman II" (1980), "Superman III" (1983) e "Superman IV - Em Busca da Paz" (1987) viram o público e a qualidade diminuir. "Batman - O Retorno" (1992), "Batman Eternamente" (1995) e "Batman & Robin" (1997) deram sobrevida aos grandes heróis no cinema até "X-Men" mudar o jogo em 2000.

Ao contrário da concorrente, porém, a DC tinha tudo para emplacar seus personagens no cinema sem tantos percalços. Afinal, a empresa pertence desde os anos 1970 à Warner, hoje um poderoso conglomerado multimídia com braços em cinema, games, streaming e animação Ainda assim, a casa parece nunca estar arrumada.

Pode parecer uma comparação injusta, mas ela é inevitável. Mesmo com o caos de um processo de falência, e de anos com suas propriedades intelectuais espalhadas por dúzias de estúdios, a Marvel conseguiu dar ordem ao caos e, depois de adquirida pela Disney, cravou seu universo cinematográfico como a série de super-heróis mais bem-sucedida da história.

A DC, por sua vez, sempre funcionou bem em bolhas. A trilogia "O Cavaleiro das Trevas", de Christopher Nolan, é a base de muita adaptação de HQs moderna. Filmes como "V de Vingança", "Constantine" e "Watchmen", que saíram das páginas de seus quadrinhos, conseguiram romper o hermetismo dos fãs para atingir um público mais amplo.

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Henry Cavill em 'O Homem de Aço', de Zack Snyder
Imagem: Warner

O problema foi a vontade de surfar na onda da concorrência e criar um universo compartilhado, sem que existisse um arquiteto por trás de tudo. "O Homem de Aço" é uma aventura decente, que ganhou continuação nos desastres "Batman vs. Superman" e em duas versões pavorosas de "Liga da Justiça". "Esquadrão Suicida", que habita a mesma continuidade, foi um desastre.

Seus esforços solo, como "Aquaman", Shazam!" e "Mulher-Maravilha" tiveram mais respeito e mais sucesso. "Coringa", que traz zero conexão com qualquer outro filme com os mesmos personagens, foi aplaudido em todo o mundo, faturou mais de US$ 1 bilhão e ganhou um par de Oscar.

O caminho para os acertos parece claro. Ainda assim, a Warner insiste em metralhar o próprio pé. O caso de "Novos Deuses" é um absurdo. Ava DuVernay, do drama "Selma" e da série espetacular "Olhos Que Condenam", estava desenvolvendo o roteiro com o escritor Tom King, que tornou-se superstar nos quadrinhos ao conduzir até o fim do ano passado as aventuras do Batman.

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Darkseid, o vilão mal aproveitado da nova versão de 'Liga da Justiça'
Imagem: HBO Max

A justificativa para cancelar o projeto, uma aventura grandiosa de deuses intergalácticos que governam planetas em guerra constante, foi a presença de seu vilão, o déspota cósmico Darkseid. Os executivos do estúdios concluíram que ele correia o risco de superexposição depois de aparecer em meia dúzia de cenas da versão de Zack Snyder de "Liga da Justiça".

Eu honestamente acreditei que a notícia fosse pegadinha de 1° de abril. Darkseid, afinal, em nenhum momento sugere sua imponência em "Liga da Justiça". Ele é derrotado em sua primeira cena, sofre de amnésia por ter esquecido o pianeta de sua derrota e, quando finalmente encara os heróis, limita-se exatamente a isso: encarar. Desperdiçado criminalmente em "Liga da Justiça", Darkseid teria chance de tornar-se uma ameaça real em "Novos Deuses". O estúdio achou melhor não.

O caso de "The Trench" é ainda mais bizarro. James Wan, diretor de "Aquaman", e responsável pelo universo de terror ancorado por "Invocação do Mal" na própria Warner, estava desenvolvendo o spin off como um filme de monstros abissais, que podia abrir uma outra porta para este universo.

Sem falar que "Aquaman" rendeu mais de US$ 1 bilhão, e explorar seu mundo seria lógico. Não para o estúdio, que fechou a gaveta porque desenvolver uma sequência de "Aquaman" aparentemente é de bom tamanho.

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Megan Gale seria a Mulher-Maravilha em 'Justice League: Mortal'
Imagem: Reprodução

Sentar em projetos de potencial enorme e deixar que eles evaporem virou especialidade do estúdio - e não e de hoje. Tim Burton viu seu terceiro "Batman" ser descartado, e o próprio Joel Schumacher, que assumiu a série do Homem-Morcego nos anos 1990, planejava um retorno às raízes sombrias do herói com "Batman Unchained", que ficou só na ideia.

Depois disso Darren Aronofsky trabalhou com Frank Miller em "Batman: Ano Um" que não deu em nada. O mesmo para uma versão live action de "Batman Beyond". O ambicioso "Batman vs. Superman" de Wolfgang Petersen, com Jude Law como o Homem de Aço e Colin Farrell como o Cavaleiro das Trevas, também foi desconectado no começo da produção.

Quer mais? Antes de Bryan Singer fazer seu "Superman - O Retorno", a Warner gastou milhões com "Superman Reborn", em que o herói voltaria em seu filho com Lois Lane (sério), em "Superman Lives", em que Tim Burton dirigiria Nicolas Cage como o Homem de Aço, e em "Superman FlyBy", escrito por J.J. Abrams com Brett Ratner na direção - filme este que mudaria profundamente a mitologia do herói, já que Krypton, para começar, não explodiria.

Mesmo projetos recentes tiveram investimento alto em seu desenvolvimento e não saíram do lugar. "Green Arrow: Escape from Super Max" tinha um conceito bacana, com o Arqueiro Verde isolado em uma prisão para supercriminosos. "Justice League: Mortal" estava pronto para ser rodado por George Miller ("Mad Max"), mas a Warner desistiu com elenco e equipe já na agulha. Guillermo Del Toro trabalhou em "Justice League Dark" e a coisa não saiu do lugar.

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Robert Pattinson em 'The Batman', de Matt Reeves
Imagem: Warner

Aparentemente o estúdio vai insistir no universo compartilhado que não decolou. É neste mundo que se passa "O Esquadrão Suicida", de James Gunn. É neste mundo que "Adão Negro", com Dwayne Johnson, será ambientado. É o mesmo mundo das continuações de "Aquaman" e "Shazam!". É este mundo que "The Flash", de Andy Muschietti tentará impor alguma ordem.

Curiosamente, "The Batman", novo filme do Homem-Morcego com Robert Pattinson como o Cavaleiro das Trevas, sob a direção de Matt Reeves, será uma aventura totalmente independente. Segundo o Hollywood Reporter, o filme será ambientado na Terra-2, uma realidade paralela dentro do universo DC. Boa sorte em explicar isso ao público.