Topo

Roberto Sadovski

Fake news, Gary Oldman e streaming: David Fincher discute a criação de Mank

David Fincher, diretor de "Mank" - Netflix
David Fincher, diretor de 'Mank' Imagem: Netflix

Colunista do UOL

16/12/2020 04h41

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

"Use uma máscara!" David Fincher deixa escapar a recomendação ao final de nosso papo sobre seu mais novo trabalho, "Mank", disponível desde o início do mês pela Netflix. Não foi uma frase aleatória, já que 2020 será encerrado sob a sombra da pandemia do coronavírus, que manteve boa parte da população do planeta ilhada em suas casas (pelo menos a parte pensante), tendo o streaming como uma das janelas para o mundo exterior.

"Mank", fosse lançado alguns anos atrás, seria mais um filme de imenso prestígio que lotaria um circuito de cinema independente, colecionando prêmios mas passando ao largo de um público cada vez mais interessado por propriedades intelectuais. O que não é nenhum demérito, mas foi um dos fatores que, assim como Alfonso Cuarón e Martin Scorsese antes dele, fez com que Fincher optasse por uma parceria com a Netflix.

Fincher mank 1 - Netflix - Netflix
Amanda Seyfried e Gary Oldman revivem parte da história do cinema em 'Mank'
Imagem: Netflix

David Fincher é provavelmente o cineasta mais meticuloso em atividade no cinema hoje. Sua atenção para detalhes e perfeccionismo extremo trazem comparações nada exageradas com o estilo impresso por mestres como Stanley Kubrick.

Sempre foi assim em sua carreira enxuta e impressionante. Depois de assinar comerciais e vídeos musicais premiados, ele estreou no furacão "Alien3", que foi mutilado por produtores indecisos. Foi o que bastou para sua decisão de só trabalhar com controle total de sua obra, o que aconteceu já a partir de "Se7en".

O suspense "Vidas em Jogo" foi um exercício em estilo que antecedeu o sublime "Clube da Luta", filme perfeito para encerrar o século 20. O respiro hitchcockiano de "O Quarto do Pânico" foi seguido pelo espetacular "Zodíaco". "O Curioso Caso de Benjamin Button" colocou seu nome entre os cineastas mais inovadores e respeitados de uma geração, consolidado com a obra-prima "A Rede Social" e com a refilmagem de "Os Homens Que Não Amavam as Mulheres".

Fincher fight - Fox - Fox
Brad Pitt em 'Clube da Luta', o filme que encerrou o século 20
Imagem: Fox

"Garota Exemplar" chegou aos cinemas em 2014, mas Fincher já estava de olho na nascente tendência da produção e exibição em streaming desde o ano anterior, quando ajudou a criar a série "House of Cards" para a Netflix. Desde 2016, o diretor esteve profundamente envolvido com outra série, "Mindhunter", além de atuar como produtor executivo da antologia de animação "Love, Death + Robots" - todas para a Netflix.

Quando conversamos pela última vez, cerca de treze anos atrás, Fincher estava finalizando "Zodíaco" e se preparava para iniciar a produção de "Benjamin Button". Assim como antes, foi um papo exclusivo para o Brasil em que o diretor, sempre generoso em suas respostas e dotado de sagacidade e bom humor, abriu seu processo de criação, mostrando a engrenagem que move sua paixão pelo cinema. "Já era hora de a gente papear de novo", disse logo que começamos a conversar. Então vamos lá!

Fincher 2 - Netflix - Netflix
David Fincher: "Antes de mais nada, 'Mank' é um estudo de personagem"
Imagem: Netflix

Seu pai, Jack Fincher, terminou o roteiro de "Mank", e você quase rodou o filme ao final da década de 1990...
(
interrompendo) "Quase" seria generoso! (risos) Eu ofereci a vários produtores. Ninguém quis. Mas foi compreensível. Era uma proposta para um público muito seleto. Eu não acho que... Digamos que não dá para vender nenhum McLanche Feliz com esse filme. (risos) Estranhamente, quando tentamos fazer o filme pela primeira vez, a noção de um noticiário com fake news era, digamos, peculiar. Eu tive a mesma impressão quando li o roteiro pela primeira vez, que as pessoas que conheciam o período iam rir como se tivessem 8 anos de idade. Mas eu não estava certo que teria algum efeito no público. Ironicamente, mais de vinte anos depois, nunca pareceu tão oportuno.

Eu sei que a arte pode ser o reflexo do mundo posto à nossa frente, mas "Mank" muitas vezes deu a impressão de estar olhando por minha janela. Com um texto assim em mãos, como encontrar o equilíbrio entre a história que você está contando e o contexto global que também é exposto?
Bom, você precisa confiar no plano inicial. Fizemos algumas modificações ao longo do processo para descomplicar cada entrelinha. A grande pergunta que um material assim sugere é, a gente vai dar um pause a cada 15 minutos para pescar os paralelos com nosso mundo, ou a gente vai abaixar a cabeça e contar a história? Por que, no final das contas, se o que está acontecendo no primeiro plano não funciona, então o que acontece no fundo não faz a menor diferença. O personagem era exatamente quem eu gostaria de ver em um filme.

Eu sempre achei que Mankiewicz era engraçadíssimo em seu desprezo desenfreado por Hollywood, admirava o quanto isso era convincente de forma divertida. Tem um monte de coisas acontecendo nas entrelinhas que requer paciência do público. Colocamos também os nomes certos nas pessoas certas, para quem quiser bater uma comparação com os fatos. Mas a ideia sempre foi mostrar, antes de mais nada, "Mank" como um estudo sobre um personagem. Todos os outros aspectos ocupam o banco do passageiro.

O filme tem uma vibe pró-Mankiewicz. É assim que você também enxerga a famigerada "batalha por 'Cidadão Kane'"?
Olha só, o filme aborda o primeiro esboço do roteiro de "Kane". Mankiewicz, (o diretor Orson) Welles e (o ator e produtor John) Houseman editaram esse monstro de 307 páginas, e Herman logo já estava em outro trabalho. Eu não estou aqui pra... Sabe, quem me conhece, especialmente na associação de roteiristas, sabe que eu não tenho estômago para essa coisa de mediação de crédito póstumo.

Mas gostei de investigar a ideia de alguém que nunca escondeu seu desprezo pelo cinema, e que passou parte de sua carreira, ao menos uns 30 por cento dela, sem fazer questão de receber créditos, se fazer de ofendido por um único momento específico. Isso me pareceu insólito, é uma dessas coisas que a gente vê e pensa, "ele sempre foi tão consistente em oferecer sua indiferença, e agora ele quer esse trabalho em sua lápide". Eu não tenho nada contra ninguém envolvido na criação de "Cidadão Kane", meu interesse foi mesmo em sua mudança de atitude.

Fincher mank 2 - Netflix - Netflix
Fincher sobre Oldman: "Enquanto entidade dramática ele é um repositório de histórias e gracejos"
Imagem: Netflix

Gary Oldman criou um retrato espetacular de Herman Mankiewicz em sua performance. O quanto já estava arraigado no roteiro e o quanto vocês decidiram na hora ao longo das filmagens?
Gary nunca decide nada na hora! (risos) Ele é um.... um processador! Enquanto entidade dramática ele é um repositório de histórias e gracejos, e ao abordar um personagem ele busca onde vai pendurar seu chapéu - e não de uma forma esquisita! (risos) Não é que a gente tivesse de chamá-lo de Herman o dia inteiro. Não tem nada perturbador sobre o modo como ele trabalha! No caso de Herman, os fatos são muito distintos, sobre por exemplo suas escolhas. Gary mantém todo esse material em circuitos de memória, então ele aplica esse entendimento de quem é a pessoa que ele está interpretando.

E, sabe, esse cara está morto há muito tempo, então é basicamente sua imaginação alimentada por pontos de referência bem específicos. Ele toma uma decisão, seguida por outra que está em harmonia com escolhas do próprio Herman. Daí surge uma terceira que parece ridícula e fora de sintonia com o resto, e Gary processa tudo para estabelecer limites em seu personagem. Ele mantém tudo isso acessível ao interagir com os outros atores que estão fazendo sua parte. E esse é seu processo de transformação. Não é como uma tomada que a gente liga e desliga, mas também não é alguém olhando para o próprio umbigo. Gary é alguém com talento e experiência consideráveis, e ele não precisa mostrar que está se concentrando para a próxima cena. Ele simplesmente faz! Isso faz algum sentido? (risos)

Sem dúvida! Deve ser fascinante observar todo esse processo.
E é! Bom, é estranho ter um roteiro que é amarrado por uma quantidade enorme de citações do próprio Herman, coisas que ele disse relacionadas a certas situações, e que eram tão boas que as pessoas da época obviamente tomaram nota. (risos) Isso meio que se tornou seu registro público. Meu pai meio que construiu o roteiro literalmente escolhendo essa e essa e essa fala, e depois esculpiu a história em torno desses melhores momentos que ele queria abordar.

É um modo esquisito para trabalhar, tem seu valor, e por fim rendeu algo semelhante ao filme que Mankiewicz estava escrevendo, no sentido de que ambos eram pequenas fatias, remendadas por uma perspectiva imposta: a ordem do conjunto foi determinada pela história que por fim decidimos contar. No começo era meio como "RKO 281" (telefilme de 1999 que retrata os bastidores de "Cidadão Kane"), e a história foi diminuindo progressivamente, até chegar nesse sujeito e em seus aspectos mais Rosencrantz e Guilderstern (personagens secundários de "Hamlet", que deram seu ponto de vista da tragédia de Shakespeare ao se tornar protagonistas da peça criada por Tom Sheppard nos anos 1960).

Fincher 3 - Netflix - Netflix
David Fincher: "O modelo de multiplexes não ajudou ninguém a não ser pessoas que possuíam terrenos imensos para construir cinemas"
Imagem: Netflix

"Mank" retrata uma época de mudanças profundas, dos filmes mudos ao cinema falado, mostrando uma guinada na maneira em que filmes eram produzidos. Agora experimentamos uma outra guinada na forma em que filmes são produzidos e distribuídos. Você nutre algum carinho especial pela experiência coletiva no cinema ou as plataformas de streaming representam o futuro?
Você diz, a experiência no cinema e assistir a filmes em casa podem co-existir em um mundo com pessoas que adoram filmes? Sem dúvida! Assim, é exatamente a forma que tem sido nas últimas quatro ou cinco décadas. Acho que mais importante é se questionar se estes dois sistemas de entrega podem conviver, e eu diria que o incentivo para a sobrevivência da experiência nos cinemas é assumir a responsabilidade que essa experiência seja boa! Que seja melhor do que tem sido. Já estávamos falando sobre isso no começo do ano. Eu estava iniciando um projeto e esbarramos na arquitetura de uma sala de cinema. A pergunta é, como que essa caixa com assentos no balcão tornou-se o modelo prático do que achamos que seria uma sala de cinema.

Até o momento em que os cinemas começarem a fechar ninguém da indústria questionava esse modelo. Esse precisa ser o próximo passo, precisamos enxergar a tábua de salvação da exibição. Sejamos francos, o modelo de multiplexes não ajudou ninguém a não ser pessoas que possuíam terrenos imensos para construir cinemas novos. A experiência nos cinemas precisa de atenção, e eu tenho toda fé no mundo que as pessoas vão inundar os cinemas assim que for seguro, mas também quando essa experiência se tornar o que deveria ser. E eu não vejo nenhum motivo para que os dois sistemas não possam co-existir.

Da última vez que conversamos, treze anos atrás, você tinha alguns projetos na manga, como a adaptação da série em quadrinhos "Torso", de Brian Michael Bendis (que conta a caçada a um serial killer empreendida pelo mesmo Eliott Ness de "Os Intocáveis"). Depois de filmar "Mank" para a Netflix, você enxerga outros projetos que poderiam ser recuperados no streaming como um filme ou uma minissérie?
Essa é uma pergunta muito abrangente. Por exemplo, eu não teria feito "Mank" como uma minissérie, tentamos manter um pouco acima de duas horas, o que foi neste caso a metragem correta. Em termos de escala, de estrutura narrativa, eu senti que a história poderia ser contada como um filme. Se eu ainda estivesse desenvolvendo "Torso", provavelmente diria que a história devia ser uma minissérie, porque é um estudo de personagem ao longo de um período de tempo. Os crimes descritos na história levariam meses para ser discutidos.

O sistema de entrega precisa levar em conta a antecipação dessa discussão, executada de forma responsável. Olha só, se eu tivesse de refilmar "Zodíaco", se eu apagasse o filme, eu não o faria com a Paramount ou com a Warner, e sim como uma minissérie para a Netflix. Provavelmente eu faria mais justiça à história em 4 horas, em streaming. Ninguém precisaria arrumar uma baby sitter ou perder tempo estacionando o carro!