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Roberto Sadovski

'Mortal Kombat': Nossa tolerância a filmes ruins era bem maior há 25 anos

Christopher Lambert e os astros de "Mortal Kombat", que completa 25 anos - New Line
Christopher Lambert e os astros de 'Mortal Kombat', que completa 25 anos Imagem: New Line

Colunista do UOL

18/08/2020 05h09

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O cinema pop da década de 1990 viu as produções predominantemente originais dos anos anteriores, como "Caçadores da Arca Perdida", "De Volta Para o Futuro" e "Os Goonies", dar espaço a adaptações para a tela grande de propriedades intelectuais iniciadas em outras mídias. Pode culpar o sucesso fenomenal de "Batman" em 1989 e também a ascensão de outras subculturas que saiam dos nichos para ganhar o mainstream.

Videogames aos poucos se mostravam a próxima mina de ouro, e não tardou para Hollywood voltar seus olhos a marcas infanto juvenis populares e transformá-las em caça níqueis cinematográficos. A coisa, porém, começou bem devagar. "Super Mario Bros", o primeiro game a virar filme, foi um desastre nuclear em 1993. No ano seguinte os fãs que torravam uma nota nos arcades tiveram uma decepção dupla com "Double Dragon" e "Street Fighter".

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Sub-Zero e Liu Kang preparam a pancadaria em 'Mortal Kombat'
Imagem: New Line

"Mortal Kombat", porém, parecia um animal diferente. Ao contrário das três adaptações anteriores, que tinham um fiapo de trama que mal amarrava a narrativa, o jogo de luta desenvolvido em 1992 por Ed Boon e John Tobias sugeria uma mitologia sólida, mesmo que tivesse um clichê como base: um campeonato de artes marciais em um lugar remoto, do qual somente um seria vencedor. O gameplay, por sua vez, sugeria mais violência e mais "realismo". Os entusiastas deram, então o benefício da dúvida.

Na falta de Jean-Claude Van Damme, inspiração inicial de Boon e Tobias como protagonista do game, mas que acabara de protagonizar o concorrente "Street Fighter", os produtores convocaram Christopher Lambert como âncora e o cercaram de atores pouco conhecidos.

Para a direção foi apontado o britânico Paul W.S. Anderson, abrindo suas portas em Hollywood. Depois de quatro meses de filmagem e uma extensa pós-produção, "Mortal Kombat" chegou aos cinemas em 18 de agosto de 1995 - e foi um sucesso!

Eu lembro quando assisti ao filme em sua estreia no Brasil, um mês depois da data ianque. O cinema estava lotado (uma plateia predominantemente masculina), com a gritaria começando já nos créditos iniciais, apresentados com o tema que até hoje faz sucesso nas academias. Cada novo personagem em cena era acompanhado de aplausos, cada referência ao jogo (golpes, finalizações, frases, armas) era acompanhada de urros no cinema.

"Mortal Kombat" passou três semanas no topo das bilheterias americanas, chegando em US$ 122 milhões em todo o mundo - nada mal para uma fantasia de artes marciais rodada com US$ 18 milhões. Nos anos seguintes, uma pá de outras adaptações de games chegaram aos cinemas, algumas bem sucedidas ("Resident Evil", "Tomb Raider"), outras completamente ignoradas ("Alone in the Dark", "Doom", "Far Cry"). Mas o filme de Anderson manteve-se como exemplo de como levar um jogo para o cinema com respeito e qualidade.

Pois é. Estávamos todos errados.

Os anos não fizeram nada bem a "Mortal Kombat". Melhor, deixa eu colocar dessa forma. Os predicados percebidos 25 anos atrás só estavam lá porque a sede da molecada em ver seu game favorito no cinema era grande. Essa molecada cresceu, passou a fazer filmes (ou a escrever sobre eles) e manteve uma memória afetiva em torno do filme. Mas a verdade é que "Mortal Kombat" é uma bomba.

Não precisa tomar minha palavra, já que ele está disponível em streaming pela Netflix em toda sua glória. Tive a manha de rever "Mortal Kombat", primeira vez em duas décadas, e só confirmei o quanto a coisa toda é tosca. A tal "mitologia" é um arremedo de "Operação Dragão" sem uma gota de seu charme ou personalidade.

O roteiro é risível e não faz o menor sentido. Os efeitos visuais parecem arrancados de algum game da primeira geração do PlayStation, e hoje são exemplo, ao lado do pavoroso "Spawn", de como não usar CGI em seu filme.

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O príncipe guerreiro Goro em 'Mortal Kombat'
Imagem: New Line

O golpe de miserocórdia, porém, é seu elenco. Christopher Lambert garfou seu cheque e devorou o cenário no processo - é dolorosamente óbvio que ele está ali para pagar boletos. Mas nada se compara ao trio de protagonistas. Robin Shou, o artista marcial Liu Kang, existe para desfilar sem camisa. O "astro do cinema" Johnny Cage precisava de alguém minimamente carismático, e não uma porta como Linden Ashby. E quanto menos falarmos sobre Bridgette Wilson, que "interpreta" Sonya Blade, melhor: suas expressões resumem-se a "brava" e "ligeiramente mais furiosa".

O grande trunfo da produção seria o guerreiro monstruoso Goro, "príncipe" de um reino subterrâneo e braço direito do vilão Shang Tsung (Cary-Hiroyuki Tagawa). Para construir a criatura de quatro braços, os produtores dispensaram truques digitais e optaram por um boneco animatrônico. Vai saber o que seria pior, mas basta dizer que as Tartarugas Ninja do cinema varreriam o chão com o nariz de Goro.

O sucesso de "Mortal Kombat", entretanto, acelerou a produção de uma continuação. "Aniquilação" chegou aos cinemas dois anos depois e afundou feito chumbo. Paul W.S. Anderson, agora focado em adaptar "Resident Evil", foi substituído por John Leonetti.

Do elenco sobraram Robin Shou e Talisa Soto (a princesa interdimensional Kitana) - os outros devem ter corrido com vergonha ao ler o roteiro, ainda mais confuso e primário que o anterior. Não colou e, com pouco mais de US$ 50 milhões em caixa, "Aniquilação" jogou uma pá de cal no série no cinema.

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'Mortal Kombat 11', o jogo mais recente da série, lançado em 2019
Imagem: Reprodução

Que fique claro: no cinema! A série "Mortal Kombat" continuou em dúzias de novos games, que evoluíram da luta em 2D para aventuras no estilo side scrolling, migrando dos fliperamas para os consoles de nova geração em jogos que desenharam mais detalhadamente a "mitologia" do jogo, apresentando dezenas de novos personagens e anabolizando suas características, como a violência e o humor ácido.

Há muito os produtores trocaram os avatares "interpretados" por atores reais por personagens animados, mais massudos e fantásticos. "Mortal Kombat 11", lançado ano passado (com personagens extra como RoboCop, Coringa, Spawn e o Exterminador do Futuro), foi um sucesso.

Fora dos games, porém, "Mortal Kombat" sobrevive como propriedade intelectual sólida, mesmo que concentrada em sua mídia original. As versões em animação tem seus fãs, assim como uma web série que durou duas temporadas em 2011 e 2013.

Existe um projeto para um reboot no cinema agendado 2021, mas com a carteira fechada: o diretor é o estreante Simon McQuoid, cercado aqui por um elenco de ninguéns.

"Mortal Kombat", que completa hoje 25 anos, continua sendo o produto derivado mais bem-sucedido da série. Sua "importância histórica" foi provar a viabilidade econômica de filmes baseados em games, comprovada por "Príncipe da Pérsia" (US$ 336 milhões), "Warcraft" (US$ 440 milhões), "Tomb Raider - A Origem" (US$ 275 milhões) e os pesos-pesados "Rampage" (US$ 428 milhões), "Detetive Pikachu" (US$ 433 milhões) e "Sonic - O Filme" (US$ 306 milhões).

E só. Se por algum acaso você também estava no cinema nessa mesma época 25 anos atrás, é possível que você tenha se empolgado quando o tema acelerado explodiu em Dolby Stereo. Agarre-se a essa memória afetiva e não estrague a lembrança com uma nova sessão de um filme muito, muito ruim como "Mortal Kombat". Por outro lado, se tiver algum filho/sobrinho/primo com menos de 12 anos, periga ser o melhor filme que ele vai ver (na semana). Fatality!