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Renata Corrêa

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

The White Lotus e o poder da auto crítica

Regina George se orgulharia das meninas malvadas de The White Lotus - Divulgação HBO
Regina George se orgulharia das meninas malvadas de The White Lotus Imagem: Divulgação HBO

Colunista do UOL

23/08/2021 04h00

A dramaturgia televisionada norte americana têm bem pouco medo de explorar conflitos raciais e de classe; desde que as produtoras e estúdios perceberam que abordar essas tramas traz lucros e prêmios, a indústria do entretenimento retratou vários ângulos políticos do racismo, da misoginia e da lgbtfobia.

Com exceções, temos dois tipos de criadores nesse ramo - os que efetivamente fazem parte das minorias retratadas e conseguem ter uma visão particular em uma indústria conservadora; e os criadores brancos e homens que gostam de fazer filmes-denúncia onde mostram a virtude de serem politicamente engajados e atentos aos temas sensíveis dos nossos tempos. Essas tramas falam do "sistema" ou da "estrutura" e mantém os mesmos personagens heróicos brancos que salvam minorias que eles consideram vulneráveis.

Por consequência, a indústria audiovisual, na sua maioria composta por esses mesmos homens brancos tem pouca coragem de apontar para si mesma e criticar como essa branquitude e masculinidade progressistas e bem intencionadas ainda possuem muita condescendência, crença patológica na meritocracia e pouca vontade real de mudar qualquer opressão que os beneficie.

A desde já aclamada "The White Lotus" (HBO Max) é uma exceção num mar de tentativas que não se sustentam nem como entretenimento e nem como política. No resort no Havaí que dá título à série, um grupo de endinheirados passa férias e enfrenta dramas burgueses banais, sem se atentar que seu próprio estilo de vida é insustentável e predatório para todos àqueles ao seu redor.

O criador da série, Mike White, tem uma carreira pouco ortodoxa em Hollywood. Bissexual, filho de um pastor protestante gay, não teve grandes sucessos. Foi roteirista de "Escola do Rock" uma deliciosa sessão da tarde estrelada por Jack Black, e emplacou uma série de fracassos depois disso. Inclusive parou por um tempo a própria carreira para participar do reality show Survivor. Deu depoimentos dizendo que no seu ramo todos sonham em ganhar um Oscar e ele só queria ganhar um reality show. Ficou em segundo lugar e não conseguiu - por enquanto - nem uma coisa nem outra.

Com um olhar implacável sobre relações de poder e sem nenhuma condescendência com os personagens que cria, White constrói um universo onde o ridículo dos privilegiados é exposto pelo seu cinismo e a absoluta falta de noção. Os personagens sabem que irão se safar da sua violência apenas pelo fato de ser quem são: brancos e ricos. E se vangloriam disso sem medo.

Tudo é extremamente desconfortável - a trilha sonora com sons de animais, a decoração "exótica" do resort, a subserviência dos funcionários ao lidar com os desmandos e caprichos dos hóspedes mimados. E esse desconforto se expande e se alarga quando a trama avança e entendemos o resort não apenas como um microcosmos das relações de poder sociais, mas também como um cativeiro existencial onde essas relações se repetem ad infinitum a cada nova leva de clientes.

Um dos charmes da série está nas pistas que temos sobre a trama ao observarmos os livros que os personagens lêem. Rachel, a jornalista recém casada lê "A amiga genial" de Elena Ferrante, e na trama é humilhada pelo seu marido assim como são as protagonistas do livro italiano; seu marido brutal e obsessivo lê "Blink", best seller de auto ajuda sobre tomar decisões corretas na vida sem precisar pensar; mas há uma atenção especial sobre os livros da dupla de amigas adolescentes. A branca Olivia (Sydney Sweeney, Euphoria) e a negra Paula (Brittany O'Grady, The Black Christmas) lêem Camille Paglia, Freud, Fanon, Lacan, Aimé Césaire, Judith Butler e Nietzsche, autores que formam o panteão das jovens universitárias malvadas, ultra politizadas e críticas ao sistema - mas que não conseguem escapar de reproduzir na prática as relações de poder mediadas pelo racismo e pelo colonialismo que parecem tão claras para elas na teoria.

A flor de lótus como metáfora é perfeita para sintetizar a vibe da série: apesar de ser um símbolo largamente usado para retratar espiritualidade, elevação e pureza, na vida real é uma flor que nasce na lama, e usa o lodo e os detritos para florescer, e assim triunfa; ao jogar os holofotes em como a branquitude sorri amigável numa foto de Instagram para os avanços sociais e políticos ao mesmo tempo que nos bastidores controla com mão de ferro a manutenção dos seus privilégios, The White Lotus resume os nossos tempos, onde a politização sem a prática política é só uma maneira de deixar as coisas exatamente nos lugares onde elas estão.

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