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Renata Corrêa

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Mare of Easttown' é investigação policial com alma

Divulgação
Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

31/05/2021 11h13

O cineasta François Truffaut quando era adolescente invadia cinemas para ver filmes americanos sem pagar o ingresso. Eram filmes B, principalmente com tramas policiais de investigação, que se repetiam infinitamente: um investigador durão, traumatizado, silencioso contra uma cidade que esconde muitos segredos.

Truffaut era tão apaixonado pelo gênero que resolveu escrever a sua própria história "noir" - Acossado, agora na perspectiva do fora-da-lei, mudando o cinema para sempre. O gênero se desdobrou, se ampliou, trazendo diversas encarnações desses homens durões do lado da lei ou contra ela, mas fundamentalmente eram homens estranhos em um mundo estranho e muitas vezes o seu destino era a morte: por não se encaixar em uma sociedade moderna falha, corrupta e violenta onde a moral e a honra não faziam mais sentido.

Popeye (Gene Hackman - Operação França), Michael Corleone (Al Pacino - O Poderoso Chefão), JJ Gites (Jack Nicholson - Chinatown) são os ancestrais dos homens difíceis que passamos a amar nas séries de tv: Walter White (Breaking Bad), Tony Soprano (The Soprano's), Jimmy McNulty (The Wire) e Rust Cohle (True Detective). Homens que lutam contra demônios internos enquanto tentam matar fora o que não conseguem matar dentro.

Nos últimos vinte anos começamos a assistir tramas de investigação policial da perspectiva de protagonistas mulheres. São policiais obcecadas, duronas, com relacionamentos conturbados, inteligentes, silenciosas, que se envolvem de forma profunda com casos extremamente violentos com mortes de outras mulheres e também de adolescentes e crianças. Muitas vezes essas personagens são construídas como um decalque dos detetives homens - ignorando o gênero como fator fundamental de como um personagem se relaciona com o mundo ao seu redor.

Para escrever um bom personagem o autor precisa também ser um investigador. Ignorar o gênero é ignorar uma pista muito importante a respeito da ficção a ser construída. O corpo dos personagens vive e pulsa dentro de um universo ficcional e as grandes personagens das séries de investigação policial são atravessadas de forma fatal pela identidade "mulher" e isso transforma essas histórias de forma profunda.

Precedida por Sarah Linden (Mireille Enos - The Killing), Sgt. Catherine Cawood (Sarah Lancashire - Happy Valley) e Robin Griffin (Elisabeth Moss - Top Of The Lake) chegamos em 2021 com Kate Winslet interpretando a investigadora Mary Ann, a Mare de "Mare of Easttown". Num mar de ofertas de séries de gênero no streaming, a série estreou na HBO sem muito alarde além da presença superlativa de Kate Winslet no papel principal, mas pouco a pouco foi conquistando os espectadores, provocando debates, e finalmente, na sua season finale cravando o nome de Mare no panteão de personagens inesquecíveis da investigação policial.

A partir daqui temos SPOILERS.

Mare of Easttown segue a tradição dos melhores investigadores da tv e do cinema. A protagonista está se contorcendo em dor, e afundada na escuridão emocional depois do suicídio do filho mais velho. É obcecada pelo caso de uma garota desaparecida e por um assassinato de uma jovem de uma família amiga. Ela passa dos limites da investigação e coloca em risco a própria segurança, a credibilidade da corporação e a vida dos seus familiares e companheiros de trabalho. Isso é o que ela tem de igual, mas os passos que levaram ela até essa situação são radicalmente diferentes dos detetives tradicionais. Não à toa, Mare é de Easttown. Ela não poderia ser de outro lugar: os detetives tradicionais são estranhos em um mundo estranho. Mare só é Mare pois é profundamente ligada à comunidade onde os crimes aconteceram. O detetive de chapéu e emocionalmente afastado do objeto investigado é substituído por alguém que tem como principal trunfo de sua investigação um profundo vínculo emocional. Mare sabe os nomes das pessoas envolvidas, seus problemas, suas dores, suas relações. O mundo de Mare não pode ser descartado ou abandonado. Ela faz parte e esse fato muda completamente a maneira de acompanhar a história.

Uma mulher investigando o mundo em colapso em uma cidadezinha que guarda muitos segredos não encarna a superioridade moral masculina daquele que morre por não poder suportar a iniquidade; ela é aquela que fica e reconstrói as relações que ali existem.

A resolução dos crimes e as cenas de ação são surpreendentes, coerentes, e bem amarradas - mas fazem parte de um conceito dramatúrgico maior, porém simples e eficiente: o que acontece com as vidas depois que a morte se apresenta.

Mare é a parte do todo de Easttown: ela atravessa um luto pessoal dentro de uma cidade em luto pela morte e desaparecimento de mulheres jovens. O colapso social que ela enfrenta é dela e também é o colapso dos Estados Unidos, um país que não consegue construir uma perspectiva positiva para os mais jovens, principalmente nas cidades pequenas: o futuro é um subemprego, um soco na cara, uma gravidez precoce. Os mais velhos são sobreviventes de tudo isso e da dor de assistir os mais jovens desaparecendo em uma espiral de desesperança.

Ao escolher narrar a trajetória de uma heroína gente como a gente, com uma trama sem lições morais edificantes, Mare Of Easttown chega ao seu clímax com um desfecho sóbrio e profundamente humano, pelo simples fato de sua protagonista ser comum em um mundo comum e que ao enfrentar uma sociedade falha, corrupta e violenta ao invés de abandoná-la como um homem durão, escolhe como o caminho a compaixão, esse sentimento bem mais próximo da coragem do que imaginamos.

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