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Pedro Antunes

'Madame X' é sensual, transgressor, estranho e político. Enfim, é Madonna

Madonna irrita da igreja aos políticos em Madame X - Divulgação / Montagem: Pedro Antunes
Madonna irrita da igreja aos políticos em Madame X Imagem: Divulgação / Montagem: Pedro Antunes

Colunista do UOL

07/10/2021 16h47

Primeiro, as dores do joelho impediam Madonna de seguir os planos da turnê "Madame X", inspirada no álbum homônimo, lançado em 2019. A pandemia de covid-19, em março de 2020, encerrou qualquer possibilidade de retorno.

Com um melancólico fim, "Madame X" ressuscita graças ao documentário/filme-concerto lançado amanha (dia 8) na plataforma de streaming Paramount+.

Se você cresceu no Brasil dos anos 2000 está familiarizado com este formato de "registros ao vivo".

O que assistimos é praticamente o mesmo que salvou a indústria fonográfica na virada o século, os tais DVDs ao vivo — de Ivete Sangalo a Skank, todo mundo tinha um para chamar de seu —, mas atualizados com a tecnologia.

Você não precisa mais comprar "Madame X" nas Lojas Americanas como antes. Ele estará disponível na plataforma para assisti-lo quando quiser - se tiver uma assinatura, é claro. Aliás, "Madame X" é uma ótima cartada do serviço para competir com outros gigantes do streaming.

"Madame X", o álbum, nasceu da solidão (e até depressão, como conta Madonna no palco) sentida quando se mudou para Lisboa para acompanhar o sonho do filho David de se tornar jogador de futebol profissional.

Madonna se descobriu de novo neste também novo (pra ela) mundo, que falava uma língua que não conhecia, a um oceano de distância do que ela se habituou a chamar de lar.

O resultado foi um disco muito político (afinal, Madonna é política até fazendo techno farofa) de diferentes sotaques.

As participações do álbum são Maluma ("Medellín" e "Bitch, I'm Love"), Quavo ("Future"), Swae Lee ("Crave") e Anitta ("Faz Gostoso").

Nenhum deles subiu ao palco com Madonna no registro da performance em Lisboa durante o mês de janeiro de 2020, mas somente as músicas "Faz Gostoso" e "Bitch, I'm Love" ficaram fora do repertório.

Assistido ao show do começo ao fim, faz sentido: "Madame X" é um ato político e com pouco espaço para músicas festejantes.

"Artistas estão aqui para perturbar a paz"
Fala de James Baldwin é o centro do espetáculo

Quando iniciou a turnê, em 2019, Madonna mexeu com o status quo do music business ao abandonar as turnês em estádios gigantescos, como a bem sucedida Rebel Tour - que passou por 55 cidades e uma lotação de 12 mil pessoas em média -, para focar em teatros e espaços, digamos, mais intimistas.

Claro, tudo ainda é superlativo, mas não seria mais necessário assistir à artista pelos telões nas laterais do palco. Parecia mais orgânico, real e palpável.

Inclusive, a Madonna que surge no doc/filme é inteiramente humana e acessível. Brinca com pessoas da plateia a cada intervalo, fala palavrões até em português ("caralh*" é o único que ela conhece, explica) e, principalmente, não finge ter uma idade que não tem mais.

Ela não acelera o passo, evita corridas enormes no palco e coreografias mirabolantes. "Madame X", o show, é gigantesco sem que Madonna tenha que suar como uma maratonista. O joelho que adiou tantos shows é poupado o máximo possível e pode-se perceber o incomodo da artista.

Com cenografia mutável, muitos dançarinos à disposição e uma tela gigante ao fundo, o show de "Madame X" é espetacular no sentido mais literal da palavra. Político, transgressor, sexual e sensual.

Em dado momento, Madonna passa uma fotografia entre as coxas e, diante do olhar da plateia, diz: "Não é assim que eu me masturbo, pessoal".

Em outro, ela parece prever que o futuro não era nada solar.

"O armagedom pode estar esperando por você na esquina", falou.

Assombrosamente, dois meses depois, a Europa estaria contaminada e em lockdown na tentativa desesperada de conter a pandemia de coronavírus. E a turnê "Madame X" seria cancelada.

Teatral, o show apresenta 21 músicas divididas em quatro atos e um bis. Madonna interpreta a personagem título, que se autodefine tanto como espiã quanto como "uma dançarina, uma professora, uma chefe de estado, uma governanta, uma cavaleira, uma prisioneira, uma estudante, uma mãe, uma criança, uma professora, uma freira, uma cantora, uma santa e uma prostituta."

O álbum de 2019 é o fio condutor desta narrativa. E este centro gravitacional é o melhor e o pior deste documentário.

Embora tenha uma carga dramática nas canções - e, por consequência, o show seja atual e afiado -, "Madame X" não é um disco forte o suficiente para entrar no top 5 da artista.

Há momentos cansativos como a sequência de "Come Alive", "Future" e "Crave", já no quarto e último ato do show. Mesmo assim, Madonna sabe presentear o público com alguns poucos hits. Após o trio citado acima vem uma apoteótica e arrepiante versão de "Like a Prayer".

Mas é também um álbum genuinamente "madônnico" na forma como a artista tensiona o pop à sua vontade. Ela ataca a igreja, os governos, tudo e a todos. E leva para o palco a Orquestra Batukadeiras (para "Batuka") e as filhas, com mensagens pertinentes para estes tempos de mudança.

Do álbum, a ótima "Crazy", cantada em inglês e português, melhorou ao vivo, e "Medellín" ganhou mais sensualidade no palco mesmo que Maluma só apareça no telão ao fundo.

De músicas de fora do disco, "La Isla Bonita" é menos tropical e mais tensa, tal qual "Human Nature".

O documentário tem estranhas cenas de público que gerou reações negativas nas redes sociais - como o apontamento abaixo.

Talvez esta tenha sido a última turnê de Madonna como conhecíamos - o joelho machucado responsável por cancelar algumas datas pode ser decisivo - e é um retrato de um mundo pré-Covid-19.

Dá até saudade de uma aglomeração.

Se existisse 20 anos atrás, o filme talvez não chamaria atenção na prateleira de DVDs ao vivo da Lojas Americanas, mas no contexto atual - um mundo mascarado, desinfetado com álcool em gel e diante da preocupação com a saúde de Madonna -, "Madame X" é um registro histórico de um passado que parece distante, mas é quase ontem.

É arte em estado vivo, com pulso e em carne e osso - muito distante da frieza das lives e performances sem público do último um ao e meio.

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