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Pedro Antunes

Há 50 anos, Joni Mitchell olhou as profundezas do mundo. E era azul

Blue, de Joni Mitchell, é o álbum que você deveria ouvir hoje - Montagem de Pedro Antunes sobre capa do álbum Blue
Blue, de Joni Mitchell, é o álbum que você deveria ouvir hoje Imagem: Montagem de Pedro Antunes sobre capa do álbum Blue

Colunista do UOL

22/06/2021 17h27

Sem tempo?

  • Há 50 anos, Joni Mitchell largou o noivo e a vida caseira para viver com hippies na Europa.
  • Ao voltar aos EUA, a canadense gravou Blue, disco eleito o 3º melhor de todos os tempos pela Rolling Stone EUA.
  • Mitchell escondeu segredos em Blue, alguns deles possivelmente nunca revelados.
  • Com estas canções, Joni Michell olha para a nossa alma, assim como mostra a dela para nós. É uma experiência de troca.
  • Blue é o disco que você deveria ouvir hoje.

Joni Mitchell é um tipo raro de artista que se esconde à vista de todos. Daqueles que escrevem a música mais íntima possível e os segredos profundos escondidos nela passam despercebidos por décadas.

É o caso, por exemplo, de "Little Green", uma música criada a partir de um dos momentos mais transformadores da vida da artista nascida e criada em quase completo isolamento na infância passada em Fort Macleod, no Canadá.

"Little Green", uma das mais bonitas do álbum "Blue", tem versos sobre uma filha que Joni entregou para adoção em 1964, aos 21 anos.

Esta era uma história mantida em segredo pela artista até uma antiga companheira de quarto de Joni, dos tempos em que elas cursavam escola de arte, contou tudo para um tabloide.

Este colunista reprova completamente a exposição da intimidade da artista, mas este fato ajuda a explicar a algo tão mágico de "Blue", o álbum seminal que hoje completa 50 anos.

Aliás, mais do que seminal. "Blue" ganhou relevância nos últimos anos, principalmente pela ambivalência e pela capacidade extraordinária de olhar através do ouvinte.

Não por acaso, o álbum deixou o 30º lugar na lista de 500 melhores álbuns de todos os tempos montada pela Rolling Stone EUA em 2012 e foi "promovido" na reedição da lista para o 3º lugar em 2020.

Este foi o quarto álbum da cantora canadense em um intervalo de dois anos e pouco. Mais do que um grande momento criativo, aos 27 anos, quando ela lançava "Blue", Joni vivia uma revolução interna: largou o noivo, deixou a vida caseira para trás, foi viver com hippies na Europa e criou um dos álbuns mais importantes da história.

Na época, Jjoni tinha um relacionamento com Graham Nash, um dos ícones da folk music norte-americana, integrante do supergrupo Crosby, Stills, Nash & Young) e anunciou uma aposentadoria que, na verdade, se tornaria em um retiro.

Até 1971, ela era mais uma artista daquela cena de música acústica que acompanhava a transformação florida do mundo dos anos 60 e, que, com a chegada da década seguinte, percebeu que "o sonho acabou".

O maior sucesso dela até então era "Big Yellow Taxi", uma balada com discurso ecológico, que chegou ao 14º lugar nas paradas canadenses.

Chame de retorno de saturno se quiser, mas o fato é que Joni rasgou as convenções da época e o papel que era esperado dela para ganhar o mundo.

Cansada daquela vida doméstica com Nash, ela comprou uma passagem só de ida para a Europa e foi embora, morar em uma caverna na Grécia (isso não é exagero e realmente aconteceu, o que era muito comum na época).

A parte da Grécia é importante para a história porque foi lá que ela se familiarizou com um instrumento chamado dulcimer, usado para gravar "A Case of You", considerada por David Crosby, outro gênio do folk, uma das "mais belas canções já feitas".

Não são poucos os elogios feitos Joni Mitchell e "Blue" ao longo da história, mas se um desavisado der play no álbum e deixá-lo ressoando como trilha sonora ao fundo, possivelmente a ficha do disco não cairá.

"Blue" é daqueles trabalhos que exigem total e completa atenção.

E, caso o ouvinte se entregue para esta experiência, "Blue" enxergará através dele. E isso pode ser incomodo, reconfortante, alegre e melancólico, tudo ao mesmo tempo.

Joni dizia ter esta habilidade. Falava ser capaz de enxergar a alma das pessoas. Contava que, no supermercado, chorava simplesmente porque foi viu pela alma de alguém que cruzou com ela.

O que ela faz em "Blue" é estabelecer esta comunicação de mão dupla, o que não é comum na música pop mais simples. Geralmente, a emoção do artista é o que chega no público. Não há contrapartida a não ser que o ouvinte tenha vivido pela mesma situação.

De uma maneira sobrenatural, Joni acessa partes de nós que não queremos que as pessoas conheçam: lugares de incertezas, inseguranças e medos. E também nostálgicos, sobre as saudades do que vivemos e até do que nunca existiu. Sim, é muito louco. É como "Little Green", por exemplo, em que ela canta, no subtexto, sobre a filha que colocou para adoção, entende?

Joni conta na biografia "Reckless Daughter: A Portrait of Joni Mitchell", de David Yaffe, que seus pais, ambos, eram daltônicos. Ela, pelo contrário, via cores intensamente.

Por isso, ao nomear "Blue" com o azul, ela diz muito neste título. É uma cor que se conecta com a água, com a espiritualidade, com um olhar muito interno.

Tudo é muito ambíguo ali, canções que são tristes e felizes ao mesmo tempo, porque Joni é capaz de entender, como poucos, a complexidade humana. E, veja bem, ela tinha só 27 anos.

Há uma questão técnica interessante também aqui. Joni teve poliomielite na infância e isso enfraqueceu a mão esquerda dela, que é a responsável por criar os acordes o braço do violão. O autor e neurocientista Daniel Levitin (autor de livros como "This is Your Brain In Music"), contou ao The New York Times que conversou com ela sobre esta ambiguidade desses acordes.

A dificuldade de estabelecer qual é raiz dos acordes de Joni, além de criar uma dificuldade para os baixistas que trabalharam com ela, também cria esta sensação de estranheza de duas forças opostas soando ao mesmo tempo. Sem a definição de que o acorde é maior (digamos, mais "feliz) ou menor (melancólico e introspectivo), a forma como sentir ao ouvi-lo depende de você. Que doidera, não é?

"Blue" é um álbum que melhorou com o tempo, sem dúvida. Em 1971, quando saiu, revistas como a mesma Rolling Stone EUA, listaram os homens com quem Joni havia tido intimidade para tentar contextualizar cada uma das passagens das músicas em vez de sacá-lo como obra ótima que é.

Curioso é que artistas homens da mesma geração, como Bob Dylan, Neil Young, Leonard Cohen, James Taylor, não passaram pela mesma situação, apesar de também criarem arte a partir de suas vidas, relações, amores e tesões.

Em um mesma canção, "A Case of You", Joni chorava por uma relação que estava acabando e, dizia: "se quiser me encontrar, estarei no bar". Isso me representa, viu?

Criada em uma comunidade tão pequena e restrita, Joni não teve ídolos na infância nem ninguém para se inspirar musicalmente durante a juventude. Pense nela como esta tela em branco quando ela se constrói como artista.

Portanto, cada transformação na vida dela foi intensa E a transição dos 20 anos para a próxima década da vida, já naturalmente dura, foi ainda mais acentuada para Joni.

Com um modo de cantar e respirar tão próprio e acordes únicos, Joni Mitchell possivelmente não sabia que estava sendo tão transgressora. Mas lá estava ela, questionando tudo e todos: sexo, drogas, os Estados Unidos, o idealismo, o amor, o que nos faz feliz e o próprio rock.

Joni Mitchell olhou na profundeza do mundo e viu azul. Talvez a gente nunca entenda completamente o que isso significa, mas passados 50 anos, isso ainda emociona.