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Pedro Antunes

Game of Thrones foi uma série boylixo. E precisamos lembrar disso

Jon Snow e Daenerys Targaryen, casal de Game of Thrones - Montagem / Pedro Antunes
Jon Snow e Daenerys Targaryen, casal de Game of Thrones Imagem: Montagem / Pedro Antunes

Colunista do UOL

18/04/2021 08h27

Sem tempo?

  • Game of Thrones completou dez anos da estreia
  • Dez anos de uma relação iniciada com uma série que não mostrou responsabilidade afetiva
  • A produção da HBO criou uma onda gigantesca na cultura pop, mas não respondeu à altura da expectativa criada por ela, mesma
  • Como o típico boylixo, Game of Thrones nos convenceu a entrar em uma relação e, depois, perdeu o interesse e foi embora, sem explicação

Em "Game of Thrones", que comemorou 10 anos da estreia ontem (18), traição não é um problema. É tão popular que, se houvesse Olimpíadas no continente fictício de Westeros, talvez dessem um jeito de incluí-la como uma modalidade esportiva.

Personagens populares ascenderam desta forma. Mindinho (Aidan Gillen) e Cersei Lannister (Lena Headey) foram ótimos jogadores no tal Jogo dos Tronos até enfrentarem, eles próprios, o sabor de serem ludibriados e, por fim, morrerem tragicamente.

Quem morreu sem uma cena dramática em "Game of Thrones", aliás, é porque era irrelevante na trama.

Na série criada por David Benioff e DB Weiss com base nos livros sobre esse universo medieval fantasioso de George R. R. Martin, uma morte surpreendente era até esperada (faz sentido isso pra você?).

O mocinho da primeira temporada, Ned Stark, perdeu a cabeça porque era correto demais para aquele jogo de mentiras e tramoisa. O filho dele, Rob Stark, viu a esposa grávida ser esfaqueada, porque amou quem não deveria, antes de também ter própria a cabeça rolando pelo chão de um castelo imundo.

Posso ficar horas aqui relembrando as mortes mais surpreendentes de "Game of Thrones", mas o UOL (e todos os outros portais que escrevem sobre entretenimento da última década) já devem tê-lo feito aos montes a cada estreia de temporada da série.

De tanta morte surpreendente, entre tantas traições, "Game of Thrones" deu seu golpe final.
Matou o amor que criamos em torno da série. Traição do mais alto nível!

Em determinado momento, GoT deixou de ser entretenimento que era exibido em horário nobre pelo canal pago HBO. Virou algo maior. Se tornou um fenômeno gigantesco, midiático, exorbitante.

Veja bem, quando estreou, a série era vista como uma aposta cara e de alto risco. A HBO Brasil trouxe os então desconhecidos Richard Madden (Rob Stark) e Kit Harington (Jon Snow) para o Brasil para garantir uma boa quantidade de matérias em jornais e sites de cultura pop a respeito dessa nova produção medieval. Com o sucesso posterior da série, eles nunca mais voltaram para cá.

Ações de marketing pediam, de todo modo, o mais desesperado "me ame". No Rio de Janeiro, em 2014, chegaram a erguer uma exposição de "Game of Thrones", com direito à ação de realidade aumentada para que qualquer um pudesse sentir como é subir até o topo da Muralha e levar uma flechada no coração, para a estreia da quarta temporada.

Flechada no coração? Que amarga ironia.

Porque amamos "Game of Thrones", poxa, ô se amamos. E nada mais poderoso do que um coração partido (se essa frase não está em "Game of Thrones", aliás, deveria).

Fomos, por anos, motivados a amar "Game of Thrones". Cenas de nudez de atores e atrizes lindíssimos, transformações inesperadas de trama. A cada domingo, temíamos perder nosso personagem favorito para uma espada afiada. Tudo era cativante ali.

Tão cativante que muitos (eu, incluso) lemos os calhamaços de palavras de George R.R. Martin para saber qual seria o rumo da história, até bater na barreira criativa do autor, que há anos é incapaz de terminar os livros.

O último livro da saga foi "A Dança dos Dragões", lançado em 2011. Sim, quando estreou "Game of Thrones", a série, saiu o mais recente livro da saga do qual a série é baseada.

A imprensa tem um papel importante nesse furacão que foi "Game of Thrones", claro. As teorias e memes espalhados nas redes sociais ganharam destaque em sites. Portais publicavam um "resumão" ao final de cada episódio. No minuto em que os créditos apareciam na tela da HBO, o texto estava no ar. Como isso acontecia?

Vou contar esse segredo: isso acontecia porque conseguíamos resumos vazados na deep web. Nada muito hacker, ninguém aqui é Neo do Matrix. Mas foi descoberto um fórum de sites tipo o 4shared no qual umas pessoas publicavam resumos completos e bem detalhados de cada episódio dias ou horas antes de cada episódio inédito.

Como essas pessoas que vazavam os episódios tinham acesso ao conteúdo de cada episódio, prefiro não saber, mas era algo visto como normal. O repórter acessava o resumo, fazia um texto sobre o episódio com base naquilo e, depois, checava o relato durante a exibição oficial para não cometer nenhuma gafe.

Fiz isso, inclusive, na exibição do último episódio da série, quando era editor da Rolling Stone. Li o resumão (era contra até então), fiz um textão completamente desacreditado pelo que virou a minha profissão e de coração partido pelo episódio mequetrefe. O final era estranhamente confuso, talvez condizente com o que vinha acontecendo na série.

Meu texto, publicado quando o último episódio de "Game of Thrones" chegou ao fim, ganhou uma chamada no alto da home do UOL e salvou a audiência do site da RS Brasil naquele mês. Não me orgulho, mas é do jogo.

O jogo dos apaixonados, e não dos tronos.

A verdade é que uma quantidade imensa de conteúdo era produzida sobre da série. A paixão se retroalimentava e crescia, crescia, crescia. Do Twitter para os sites e para os canais gigantescos de YouTube. Especialistas (sim, eles existem), narravam as ideias mais mirabolantes e traçavam árvores genealógicas gigantes para explicar porque fulano era o principal candidato ao Trono de Ferro.

Fomos, sim, obcecados. Nós, imprensa. Nós, fãs da saga de Martin. O mundo do entretenimento girou em torno da história daquele Trono de Ferro durante 2011 a 2019, quando a saga se encerrou de forma chocha.

Era um casamento perfeito porque "Game of Thrones" parecia que nos queria de volta. Ludibriou-nos para uma relação que, embora não sabíamos, tinha prazo de validade.

O fato de George R.R. Martin nunca ter terminando de escrever a história na qual a série era baseada era um alerta, mas nem o maior hater de Jon Snow imaginava que David Benioff e DB Weiss seriam incapazes de seguir a trama com uma profundidade aceitável.

Depois que a história narrada na série ultrapassou os fatos descritos nos livros, tudo desandou. Episódios em que nada acontecia eram seguidos por outros apressados e sem sentido.

A história contada ali não conseguiu mostrar como Daenerys enlouqueceu, como a dúvidas de Jon Snow sobre a amada foram criadas a ponto dele vir a matá-la e muito menos que Bran poderia se tornar rei da coisa toda.

(Ah, sim, cuidado, você encontrará spoilers neste texto)

Outro dia li que cientistas da Universidade College London, em 2014, começaram a desvendar a fórmula da felicidade. E ela, a felicidade, está diretamente relacionada com a expectativa que criamos em torno de algo.

Criamos expectativas altíssimas em torno de "Game of Thrones", mas fomos enganados a isso. A série nos bombardeou como aquele boylixo que manda "bom dia" todos os dias para os contatinhos dele, que conversa e convence de que gosta a gente, que quer uma vida de casalzinho, mas que é incapaz de seguir isso de fato.

Quando percebe que está nesta relação séria construída com base no que ele demonstrou, o boylixo espana, caí fora, desaparece.

De "boylixismo" a sociedade entende. Todo mundo já foi boylixo em algum momento. Eu já fui. Você, possivelmente também. O que não significa que seja aceitável. Evoluímos, todos, para evitar repetir erros do passado.

E "Game of Thrones" foi a série boylixo de uma geração. De gente, possivelmente, nova demais para ter experimentado isso com outra produção televisiva de alto impacto na cultura pop.

"Lost", criada por Jeffrey Lieber, J. J. Abrams e Damon Lindelof, foi ao ar de 2004 e 2010, e fez um sucesso estrondoso. Se fosse lançada numa época de redes sociais ouriçadas como GoT, talvez tivesse sido até maior.

Ao narrar a jornada de sobreviventes a um acidente aéreo em uma ilha paradisíaca e misteriosa localizada Pacífico, entre acontecimentos bizarros e incompreensíveis, "Lost" arrastou milhões de pessoas a conjecturar qual seria o sentido daquilo tudo.

Assim como "Game of Thrones", "Lost" também alimentou uma relação e, depois, perdeu interesse. Simplesmente nos abandonou com um final sem graça (eu adoro, mas entendo o desapontamento generalizado) e nos sentimos enganados.

Faltou, às duas séries, a tão falada responsabilidade afetiva. Convenceram-nos a amá-las e, depois, nos largaram com desdém. Perdeu o interesse e foi embora. Deixou os fãs chorando, pedindo por respostas que não existem. Começaram, ambas, sabendo que não terminaria bem. E, mesmo assim, seguiram, nos cativando, alimentando uma relação fadada ao trágico fim.

Portanto, não tente se enganar hoje, dez anos depois do início desta relação, de que ela não foi tão ruim assim. Foi ruim, sim. "Game of Thrones" nunca se importou no que fazer após conquistar a gente.

Pedir por uma refilmagem da última temporada (ou, pelo menos, do último episódio), como tantos tentaram fazer com petições online, é dar mais uma chance para quem não ligou a mínima para o amor que foi entregue antes. Um erro.

"Game of Thrones" foi gigante e histórica na sua época, mas não merece ser mais que um amor jogado fora.