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Pedro Antunes

O dia em que David Bowie não morreu

David Bowie - Reprodução
David Bowie Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

10/01/2021 10h46

Sem tempo?

  • Uma crônica sobre a morte de David Bowie.
  • O músico inglês morreu em 10 de janeiro de 2016, dois dias depois de ter lançado um disco e celebrado do aniversário de 69 anos.
  • Por cinco anos, eu lutei contra a ideia da morte de Bowie.
  • Acreditei que ele voltaria, eventualmente, e que tudo era encenação. Arte pura.
  • Cinco anos depois da morte de Bowie, posso sentir o luto por ele.

Eram as primeiras horas de uma segunda-feira e o celular vibrava, tocava, insistentemente. Irritantemente. Peguei o aparelho, para entender por que raios alguém queria falar comigo tão cedo.

Os olhos, secos, mal desgrudavam e focavam nas mensagens que vinham do pessoal do jornal no qual eu trabalhava daquela manhã de 11 de janeiro de 2016. "David Bowie morreu", diziam as mensagens.

Não consegui acreditar.

E nem tinha forças para isso. Às 2h da manhã, ou seja, cinco horas antes, ainda estava na redação O Estado de S. Paulo escrevendo sobre a cerimônia de entrega do Globo de Ouro (aquele foi o ano do sucesso de "O Regresso", filme Alejandro González Iñárritu que, pouco depois, deu o Oscar a Leonardo DiCaprio).

Depois de publicar as últimas matérias sobre o Globo de Ouro, ainda tinha me despedido do pessoal, esperado o carro do jornal me levar para casa, tentado dormir com uma dificuldade enorme por conta da adrenalina que ainda despertava o corpo criada por coberturas jornalísticas desse tipo (muitos textos, páginas de jornal que precisavam ir para gráfica, agilidade na publicação on-line, uma loucura). Ou seja, devo ter adormecido lá pelas 4h ou 5h da manhã. Fui acordado às 6h e pouco.

David Bowie não morreu, disse para mim mesmo.

Abri o Twitter e quem já estava acordado só falava nisso. Grandes jornais internacionais confirmavam a morte ocorrida no dia anterior, dia 10 de janeiro de 2016.

David Bowie morreu?

Bowie estava em uma nova fase de efervescência criativa depois de um sumiço. Em 2003 havia lançado "Reality", o último álbum dele antes de um período de dez anos distante dos holofotes e de se tornar um mistério.

Onde estaria David Bowie? Todos se perguntavam.

O inglês outrora chamado de Camaleão do Rock vivia a existência mais mundana que alguém como ele era capaz de ter ao lado da esposa Iman. Era vez ou outra flagrado pelas ruas de Manhattan, em Nova York. Gostava de buscar a filha do casal na escola.

Em 2013, na data de aniversário de 66 anos, revelou que havia voltado à música com "Where Are We Now?", primeiro single do vindouro novo álbum, "The Next Day", lançado dois meses depois.

Não estava de volta aos palcos e às turnês, é verdade, algo que abandonou depois de descobrir um problema de saúde (uma artéria bloqueada no coração) em 2006, mas ainda se mostrava criativamente intenso com aquele single e, posteriormente, com o álbum.

No dia em que comemorou 69 anos, em 8 de janeiro de 2016, ele lançava o espetacular "Blackstar", mais um disco, desta vez uma obra-prima, realmente.

Como repórter de música do Estadão, havia passado os dias ouvindo "Blackstar" até gastar para publicar matérias na capa do caderno de cultura, o Caderno 2. Análises, retrospectivas, detalhes escondidos. Mergulhei em "Blackstar", acredite.

O que é mais genial neste álbum é que ele tinha um significado quando Bowie era vivo. Após a morte dele, dois dias depois, o disco foi inteiro ampliado e intensificado.

Entenda a importância disso: Bowie transformou uma obra de arte já pronta, sólida, existente, com a própria morte. Ou melhor, fez da partida da existência mundana uma peça musical sólida, complexa, experimental e melancólica.

David Bowie não morreu, repetia para mim, mesmo, enquanto seguia de volta para a redação do jornal que eu havia deixado poucas horas antes.

Talvez fosse culpa de uma ingenuidade nossa, coletiva, a respeito da imortalidade das lendas. Lendas não morrem, nem se despedem, não têm o mesmo sangue que nós correndo pelas veias. Não sofrem, não sentem dor.

Bowie era Ziggy Stardust, era o Thin White Duke, era quem ele quisesse ser, com sua arte camaleônica. Em "Blackstar", ele assumia uma nova personalidade, era uma estrela em extinção, uma quase divindade que percebia a passagem do tempo e a inevitabilidade do fim. Bowie indicara, em 41 minutos de música daquele álbum, que estava diante da morte e ela era iminente.

A partir do prisma das lendas imortais, contudo, "Blackstar" parecia mais um disco que refletia sobre a vida e a existência até aquele ponto. Não exatamente sobre o que havia depois do fim. Não era sobre isso, eu insistia em acreditar.

O último personagem de Bowie o levou de volta para o espaço sideral, que sempre o encantou, desde o trágico personagem Major Tom, retratado no bem-sucedido single "Space Oddity", de 1969.

O dia 11 de janeiro de 2016 deve ter sido o dia em que mais escrevi na vida. Foram oito páginas do jornal dedicadas a Bowie (se não a memória não me falha) trabalhadas por mim e por outros repórteres, mais uma dezena de outros artigos publicados on-line.

Lembro de ter descido da redação no 6º andar para fumar no térreo apenas duas vezes naquele dia (geralmente eram muito mais escapadas para o cigarro). De caminhar pelos corredores com o corpo fisicamente cansado, olhos pesados, um café ruim e sem açúcar nas mãos. De acender alguns cigarros no jardim do prédio do jornal, um seguido do outro. As memórias são tão vívidas que o gosto da fumaça até volta à boca enquanto escrevo isso.

Como David Bowie poderia morrer?

Escrevi aquela tonelada de palavras no 11 de janeiro de 2016 ainda questionando a partida dele. Questionava sem coragem de contar para ninguém, é claro, para não ser chamado de louco. Fui embora do jornal às 22h. Jantei algo congelado esquentado no micro-ondas. Bebi até adormecer.

Criei uma teoria de que Bowie não teria morrido, mas não contei para ninguém, obviamente. Acreditei nela piamente, como aqueles que teorizam sobre a morte e a substituição de Paul McCartney ou de Avril Lavigne, e encontram "indícios" de que essas teorias esdrúxulas são verdade, sabe?

Na minha cabeça, Bowie estava vivo, escondido, e morte era uma encenação, parte da transformação da arte elevada à enésima potência.

Mesmo contra todos os depoimentos de amigos e colaboradores que diziam que Bowie estava realmente doente e entendia que o câncer poderia levá-lo daqui, dizia a mim mesmo que era tudo encenação. Arte pura.

Esperei a chegada de 8 de janeiro de 2017, data do 70º aniversário de Bowie, para o grande retorno. Talvez com mais um disco? Mas ele não voltou, como sabemos. Supus que a data seria, então, o dia 10 de janeiro, um ano depois da noticiada morte. Nada.

Nos anos seguintes, fazia o mesmo ritual particular de acordar cedo e buscar notícias sobre o regresso triunfal de Bowie nos dias 8 e 10 de janeiro.

Uma das maiores desvantagens de ser como repórter de música (talvez a pior delas, já que é um trabalho costumeiramente ótimo) é não poder sentir o luto quando um ídolo morre. É preciso escrever, escrever, despejar palavras, textos, análises. Não apenas sentar, sentir o pesar, ouvir um disco, como qualquer outro.

Sonhava em entrevistá-lo um dia. Contaria que eu havia sido um menino solitário que amava olhar para as estrelas entre uma pergunta e outra. Perguntaria se com ele também fora assim quando criança. Queria saber o que Bowie sentia quando olhava para as estrelas. Buscava ele por Major Tom na escuridão do céu? Ou a espaçonave do alienígena Ziggy Stardust?

O último fiapo de consistência da minha teoria descabida é que Bowie poderia ter se inspirado na apocalíptica música "Five Years", do álbum "The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars", de 1972, para voltar depois de meia década. Esperei, portanto, por cinco anos.

O prazo chegou ao fim hoje, dia 10 de janeiro de 2021. E David Bowie não voltou.

As pessoas dizem que o mundo desandou depois da morte de Bowie. Acho que elas têm razão. Tudo está tão louco que, mesmo se tivesse vivo, diria para seguisse com sua existência pacata e longe de tudo. Seria melhor para ele.

Cinco anos depois, enfim posso sentir esse luto guardado por tanto tempo.