Para um ateu como eu, ler Jon Fosse soa como uma oração

Ler resumo da notícia
É a minha última coluna aproveitando o Nobel deste ano, prometo. Mas não poderia perder a chance de voltar a um dos autores que mais tem me encantado nos últimos dois anos. Falo do norueguês Jon Fosse, reconhecido pela Academia Sueca em 2023.
Corri para ler Fosse assim que o Nobel lhe foi concedido. Comecei por "É a Ales" (Companhia das Letras, tradução de Guilherme da Silva Braga) e "Brancura" (Fósforo, tradução de Leonardo Pinto Silva), lançados no Brasil próximos ao anúncio do prêmio. Desde então, sempre volto ao norueguês.
Retorno principalmente pelas profundas marcas deixadas pelas leituras de seus romances brevíssimos. Os cenários instigantes, os deslocamentos temporais, a pegada fantástica, as camadas subterrâneas de suas tramas quase inexistentes, as pinceladas míticas.
Me aprofundei no autor graças a outros livros publicados por aqui. "Trilogia" também saiu pela Companhia com tradução de Guilherme. "A Casa de Barcos" e "Vai Vir Alguém e Outras Peças", com parte do teatro de Fosse, nos chegaram pela Fósforo também traduzidos por Leonardo.
Agora, outra editora começa a fazer com que a obra do norueguês chegue ao Brasil. A Zain acaba de publicar "Manhã e Noite", mais um traduzido por Leonardo. Não consegui parar de pensar nele e me emociono ao escrever esta resenha mesmo tendo chegado ao ponto final do livro há algumas semanas. Provável que seja o meu Fosse favorito até aqui.
É uma novela dividida em duas partes que circundam os extremos da vida de um mesmo personagem. Na primeira, a mais breve, acompanhamos o seu nascimento. Nesse momento as expectativas parecem inesgotáveis. Toda uma história de infinitas possibilidades deverá ser traçada por aquela aventura que começa junto com a vinda ao mundo.
Na segunda parte, encontramos com aquela vida praticamente concluída, chegando ao seu ato final, sem chances para mudar o que foi feito ao longo de todos os seus anos. Se antes havia incontáveis possibilidades, agora o destino é um só, inescapável. "Envelhecer é terrível", queixa-se o pescador Johannes, esse sujeito que acompanhamos em pontas que se unem diante do desconhecido.
Fantasmas perambulam pelo universo criado por Fosse em sua literatura. Em "Manhã e Noite", que carrega algo que remete a "Pedro Páramo", romance magistral do mexicano Juan Rulfo, essa marca abre espaço para momentos realmente bonitos sobre a amizade. Verdadeiros amigos nos aguardam e neles podemos confiar ao sentirmos dúvidas e temores.
Há uma palavra que sempre me vem à mente quando leio Cormac McCarthy: inefável. O estadunidense consegue nos aproximar disso que não pode ser precisamente captado, mas é possível sentir. Fosse é outro autor que, com maestria, flerta com o mistério em sua escrita.
Em ambos nos deparamos com essa coisa assombrosa que é estarmos e vivermos num mundo sem saber muito bem como viemos parar aqui, o que estamos fazendo ou para onde iremos. Longe de reduções ou maniqueísmos, também manejam de forma admirável forças transcendentais que afagam ou atormentam o ser humano desde sempre: a luz e a escuridão, o mal, as novas chances que surgem como milagre num mundo vil.
A profunda ligação de Fosse com a música - não por acaso, "Manhã e Noite" virou ópera cujo libreto íntegra a edição da Zain - fica evidente no trabalho com a linguagem. Sua prosa é marcada por silêncios e repetições, construções que nos fazem sentir hipnotizados e tragados pelo texto.
Particularmente, ler Fosse me traz certa paz, alguma serenidade, encanto diante da beleza. Talvez seja a coisa mais parecida com uma oração que um ateu como eu possa experimentar.
Assine a Newsletter da Página Cinco no Substack.
Você pode me acompanhar também pelas redes sociais: Bluesky, Instagram, YouTube e Spotify.




















Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.