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Opinião

Nobel de Literatura: reverenciar ou apedrejar? Não sejamos bestas

Se ganhou o Nobel, esse autor só pode ser bom!

Vamos com calma. Nem sempre quem ganha o Nobel é exatamente uma sumidade. Difícil achar que Winston Churchill levou o de 1953 pelas habilidades literárias, não pelo papel que teve durante a Segunda Guerra Mundial à frente dos britânicos.

Outro dia, em 2014, a Academia Sueca escolheu Patrick Modiano como o vencedor. Consigo pensar em, pelo menos, 143 autores vivos superiores ao francês. Modiano é insosso a ponto de ninguém levantar para defender ou atacar a sua literatura, e não há prêmio que mude essa imagem diante dos leitores.

Ganhou o Nobel? Melhor desconfiar desse autor.

Sempre! Sou a favor da desconfiança em todas as situações. Nem sempre o vencedor do Nobel está no patamar - às vezes inatingível - que esperamos de alguém que ostenta a medalha sueca.

Desconfiemos. Guarda alta a cada leitura. Nem que seja para ficar feliz ao ser nocauteado por um Jon Fosse e descobrir, graças ao prêmio, um dos escritores mais fantásticos que temos.

O Nobel gosta de premiar nomes obscuros?

Aí a coisa complica.

Adélia Prado pintou em listas de favoritos para o Nobel deste ano. É uma autora obscura? Para nós, brasileiros, que a temos como um nome fundamental da literatura contemporânea, com certeza não. Agora, é provável que leitores do Sri Lanka ou do Azerbaijão pouco conheçam da poesia de Adélia.

A pergunta que fica é: autor obscuro para quem? Raros nomes são conhecidos no mundo todo. E isso não quer dizer que apenas esses poucos mereçam a distinção, que não se dá por popularidade.

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A arte não se limita ao nosso umbigo, àquilo que conhecemos e dominamos. Não sejamos bestas.

Eles só gostam de europeus!

Uma quase verdade que só não é verdade completa porque eles gostam mesmo é de autores do norte global. Quem escolhe o Nobel vive com a cabeça enfiada na Europa e nos Estados Unidos. Vencedores de outros cantos do mundo mais confirmam do que contrariam essa minha afirmação.

Amostras recentes. Han Kang, da Coreia do Sul, já tem uma carreira muito bem estabelecida no Ocidente. Abdulrazak Gurnah, da Tanzânia, vive desde a década de 1960 na Inglaterra. Kazuo Ishiguro, nascido no Japão, é um autor muito mais britânico do que japonês.

O Brasil nunca vai ganhar o Nobel de Literatura.

Nunca é muito tempo. No entanto, enquanto o país não tiver um trabalho consistente e perene de internacionalização de sua literatura, a coisa seguirá bem difícil.

O Nobel para um brasileiro ou brasileira deverá ser a consequência de olhares globais que se voltem para nossos romances, contos, ensaios, poemas. É fundamental o investimento público de longo prazo, com programas sérios de tradução e promoção cultural que sobrevivam a trocas de governos.

E daí que ganhou o Nobel? Quem se importa com isso?

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Muita gente, né? Caso contrário, não mexeria com o mercado editorial no mundo inteiro.

É um prêmio centrado demais numa parte bem específica do mundo, concordo.

Também concordo: seria ótimo se tivéssemos outros reconhecimentos tão badalados quanto o Nobel e que trouxessem uma pluralidade maior de olhares, mirassem para outros cantos do planeta e para formas mais diversas de se fazer literatura.

Apesar disso tudo, é tacanho reduzir o Nobel a seus problemas e contradições. Sublinho: não devemos ignorar ou deixar de discutir os diversos poréns, mas, como leitor, dá para achar um ponto de equilíbrio nessa relação com o prêmio e seus premiados.

Não é da Academia Sueca que virá a revolução.

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Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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