'Neca': ousadia, humor e muita sacanagem num romance que confia no leitor

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"Mas era a época braba, né? Ditadura, ditadura mesmo. Hoje é dizerem o nome de ocó, chamarem no masculino, pronto, ai meu Deus, a bicha já acha que vai morrer. Lá atrás não, o risco era de agressão, mutilação, ser presa, risco mesmo de vida. A violência na rua era babado. Sair de travesti de dia, só se ela passasse muito amapô, senão o caminhão do Faustão pintava e ia é levando uma por uma. Destino: a delegacia, pra ela ser estuprada lá pelos lacos ou, então, servir de empregada pros alibãs".
Ocó, amapô, lacos, alibãs? Se sentiu meio perdido? Acontece. A principal virtude de Amara Moira em seu "Neca" é não entregar tudo, confiar no leitor para que aos poucos ele compreenda o que determinados termos significam. O contexto ou as repetições - às vezes com excessos tanto na forma quanto no conteúdo - nos ajudam a descobrir ou a pelo menos imaginar possibilidades de significados para palavras incomuns.
É uma confiança que contrasta com uma corrente da literatura que tem feito sucesso. Aquela que se explica demais, que parece ter pavor de que o leitor não entenda absolutamente tudo o que o autor quer dizer, se valendo de recursos no próprio texto para controlar a recepção do que está escrito. A prática subestima o papel - e muitas vezes a inteligência - do interlocutor.
Bom ver Amara, pesquisadora e profunda admiradora de James Joyce, bancando uma ousadia. O romance exige do leitor certa dedicação, um papel ativo para dominar a linguagem e compreender a arte.
Escrito em bajubá, a "língua das bichas", como lemos na orelha, "Neca" traz o monólogo de uma travesti que relembra seus dias de prostituta no Brasil e na Europa.
Ao longo do relato cheio de humor e repleto de sacanagens, revelações sobre o sexo dialogam com toques reflexivos sobre corpos dissidentes, lutas políticas e violências sofridas por grupos marginalizados. Boas pitadas de história literária em forma de chistes algo fofoqueiros sobre a sexualidade de grandes escritores como Fernando "People" temperam "Neca".
"Por tudo isso é que eu digo: sempre bom ir checar se a ruela do boy ainda é a mesma do começo do namoro, ou se com o tempo, eles se acostumando, perdendo o medo, sem você nem perceber ela não foi virando avenida. [...] Sério, cê ia querer morrer se visse o que eu já vi caber num edi", lemos em outro trecho.
"Neca" é um livro sobretudo sobre desejo e prazer. Sobre as delícias, ousadias, loucuras e os tabus do sexo, as fantasias muitas vezes inconfessáveis. Sobre a busca por transformar imaginação em realidade e os conflitos que surgem por conta disso. Seja por moralismos ou preconceitos, nem sempre é fácil assumir e colocar em prática os próprios fetiches.
Escrito com uma língua das ruas - viva, em frequente mudança -, "Neca" também é uma literatura em movimento. O livro publicado pela Companhia das Letras é a versão expandida e retrabalhada do monólogo experimental que já tínhamos encontrado em "Neca + 20 Poemas Travessos", lançado em 2022 pela O Sexo da Palavra.




















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