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Opinião

Milly Lacombe X Festa de SJC: virou rotina a truculência contra a cultura

Na última semana, a Festa Litero Musical de São José dos Campos cancelou a participação da jornalista Milly Lacombe na edição deste ano do evento. Pessoas chilicaram por conta de um vídeo em que Milly faz críticas à tal família tradicional.

A reclamação chegou nos políticos locais. O prefeito da cidade, Anderson Farias (PSD), se posicionou. Disse: "cultura deve unir, não dividir". Para ele, um evento assim não deveria dar palco para assuntos políticos ou ideológicos. Lenga-lenga demagoga que estamos cansados de escutar.

Só não esperavam que uma série de convidados da festa também cancelariam a sua ida a São José dos Campos. Xico Sá, Maria Carolina Casati, Júlio Pimentel Pinto, Cristhiano Aguiar, Christian Dunker, Micheliny Verunschk, Naomi Jaffe, Adriana Ferreira Silva e Marisa Orth foram alguns nomes que deixaram o evento.

Na verdade, quase todos os convidados da programação principal romperam e a cancelada foi a festa. Antes disso, logo após a censura prévia a Milly, o grupo curatorial formado por Alice Penna e Costa, Bianca Mantovani, Tania Rivitti e Bruna Fernanda também havia se retirado do encontro de São José dos Campos.

É uma patacoada que remonta aos primórdios da ascensão da extrema-direita. Dar porrada na arte, vociferar contra artistas e patrulhar ideias divergentes está na base do fortalecimento desses grupos em qualquer lugar do mundo.

Todos devem se lembrar de quando, em 2017, um bando atacou a exposição "Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira", então em cartaz no Santander Cultural de Porto Alegre. Naquela altura a dúvida era razoável: não entendiam nada de arte e faziam leituras tresloucadas do que viam ou agiam de má-fé? Tenho aquela estupidez como um marco.

Sim, existe por aí quem ainda acredite que arte deve ser um negocinho cafona e supostamente bonitinho para pendurar na parede da sala, para tirar um sorriso protocolar da avó num almoço de domingo. Há quem acredite que cultura é qualquer coisa que não gere divergência, que não provoque rusgas nem abale estruturas dominantes. Daí junta a visão tacanha de um lado com oportunismo, covardia e truculência de outro e pronto, estrago feito.

Faz uma década que a coisa tem estado difícil. Patrulhas, cancelamentos, silenciamentos e cartilhas com o que pode ou não ser dito - e como deve ou não ser dito - se espalham por aí. Gestores culturais vão sendo trocados por operadores de planilhas, sempre prontos para dizer sim senhor pra tudo - daí a importância de gestos de dignidade como o das curadoras do evento de São José dos Campos

Em 2018, em Maringá, por conta de ameaças contra Marcia Tiburi, a convidada, cheguei a mediar uma mesa lotada de seguranças. Foi num espaço em que toda a plateia só acessava após passar por detector de metal, uma prudência da organização, claro, mas também uma anomalia para um evento literário (conto com detalhes aqui).

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Essas perseguições nunca arrefeceram, muitas vezes só não ganham holofotes. Toda hora ficamos sabendo de novos assédios, de violências sutis a censuras descaradas. De gente com medo de discutir certos temas, propor determinadas leituras em ambientes que, na teoria, deveriam ser espaços seguros para a troca de ideias.

Puxando de cabeça, nas últimas semanas tivemos a sacanagem contra a Flipei em São Paulo e uma ordem para que "ABC Doido", de Angela Lago (Melhoramentos), livro vencedor do Jabuti de 2000, fosse recolhido de escolas de Sorocaba por suposta apologia ao diabo - não consigo segurar a risada diante de algo tão estapafúrdio. Agora, o episódio de São José dos Campos.

É um clima que leva muita gente a já se silenciar de antemão, a evitar se posicionar não com medo do contraditório (salutar quando intelectualmente honesto, o que é raro), mas de represálias.

Liberdade de expressão? Bobagem. É um povo que não quer diálogo algum, quer apenas submissão, quer que o outro baixe a cabeça para tudo o que é imposto. Sem questionar, sem lamentar, sem se revoltar. Se puder aplaudir a submissão, como tantos puxa-sacos sempre estão dispostos a fazer, ainda melhor.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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