Por que bienais fazem tanto sucesso se não somos um país de leitores?

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Números de bienais impressionam.
Editoras já comemoram aumento nas vendas da Bienal do Rio deste ano, que começou na última sexta. Comparando com o primeiro final de semana da edição anterior, a Planeta viu um crescimento de 80% em seus números, enquanto Sextante e Arqueiro tiveram acréscimo de 70%. Na Intrínseca, o faturamento subiu 63%. Na Globo, 50% a mais de livros vendidos.
São amostras que casam com outros pontos. No sábado, dia de ingressos esgotados, o Riocentro ficou abarrotado. Filas enormes contornavam os estandes enquanto muita gente tentava circular pelos corredores puxando malas de rodinhas, um jeito mais fácil de carregar os livros comprados.
Não é de hoje que o público total impressiona. No Rio, organizadores trabalham com a possibilidade de superar a marca da edição de 2023, quando cerca de 600 mil pessoas visitaram os pavilhões. Em São Paulo, só para pegar a outra grande Bienal do setor, a edição de 2024 teve mais de 720 mil visitantes.
Em escala menor, outros eventos livreiros e literários do país podem se orgulhar de reunir quantidades admiráveis de leitores. Penso na Flipelô, de Salvador, n'A Feira do Livro, que acontece neste momento em São Paulo, ou na Flip, de Paraty, o mais óbvio. Ver o interesse por esses encontros tira sorrisos dos apaixonados por livros.
Diante disso tudo, é compreensível que uma pergunta pipoque por aí. Uma pergunta que me foi feita diversas vezes por pessoas diferentes nos últimos anos e que toma contornos ligeiramente distintos a depender da situação. Se o Brasil lê pouco, o que explica tanta gente nesse tipo de evento? Se não somos um país de leitores, de onde vem os números superlativos das bienais?
Quem dera bienais e outras festas literárias fossem um retrato fiel do interesse pelos livros e da dedicação à leitura por estas bandas...
A última edição da Retratos da Leitura no Brasil mostrou o tamanho do buraco em que estamos nos metendo há década. De 2019 para cá, passamos de 100,1 para 93,4 milhões de leitores. O tombo é maior se compararmos com 2015, quando éramos 104,7 milhões. Desde então, o Brasil deixou de ser um lugar onde 56% da população poderia ser considerada leitora e virou um país onde 53% dos habitantes assumem não ler.
Pesquisas sobre vendas de livros vêm oscilando nos últimos anos. Períodos de queda contrastam com bom momentos - a pandemia foi um deles - e fenômenos pontuais que salvam as planilhas de muitas editoras - como a nova moda dos livros para colorir. Enquanto isso, todo o setor editorial lamenta o descaso governamental na execução de planos para o livro e a leitura.
Em conversas nos bastidores, alguns editores celebram, sim, crescimentos nos últimos anos, especialmente aqueles que investem pesado em livros juvenis e religiosos. Porém, outros tantos, especialmente de editoras menores, contam que anda cada vez mais difícil fechar as contas. A sensação que fica é que o interesse do leitor está cada vez mais concentrado em algumas poucas editoras.
Olhar para uma Bienal e enxergar um retrato de como o brasileiro se relaciona com os livros é acreditar numa miragem. Ver dados macros sem procurar as contradições que escondem é correr o risco de festejar ursinhos para colorir pensando celebrar o interesse por qualquer literatura que pelo menos pare de pé. Nem a Bienal é essa bienal toda para todos os expositores.
Muita gente tem o desejo de fazer do Brasil um país de leitores. É nobre, é legítimo, só não podemos nos enganar. Eventos são ótimos. Possibilitam encontros, rendem bons negócios, levantam discussões, dão ânimo para quem trabalha com isso. Só não devem ser confundidos com a realidade cotidiana, sempre mais complexa, menos esfuziante.
São as ações corriqueiras, perenes, quase sempre distantes de qualquer holofote, que podem ajudar a mudar o cenário da leitura por aqui - a primeira delas: resolver o vergonhoso problema da alfabetização no país. Volto de uma Bienal contente, mas ficaria mesmo empolgado se encontrasse no boteco aqui da esquina, no Tucuruvi, uns e outros discutindo a brilhante construção da passagem do tempo em "Nem Mesmo os Mortos", de Juan Gómez Bárcena, ou compartilhando a expectativa para ler o "O Bom Mal", nova preciosidade da Samanta Schweblin.
Haveria ainda outras caixas para abrir.
Uma: apesar dos problemas e das quedas, temos sim muitos leitores em termos absolutos. Num país de mais de 210 milhões de habitantes, qualquer 10% ou 20% que pratique alguma coisa já representa uma enormidade de gente. E essa gente leitora precisa ser melhor tratada para que jamais deixe a prática de lado.
Outra: ser leitor é diferente de ser comprador de livros. Muitas vezes comemoramos a aquisição do produto presumindo que isso também significa a apreciação da literatura. É, no mínimo, uma imprecisão.
Só mais uma: falar apenas de livro não basta. O que se lê? E como se lê? São perguntas fundamentais que ficam escanteadas diante de números.
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Fui um pouco além nesses últimos pontos numa edição da newsletter, deixo aqui como sugestão de leitura complementar: afinal, o que é um leitor?
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