Monumento ao rancor em um livro extraordinário: a obra de Mircea Cartarescu

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Poucas coisas são tão singulares quanto ler Mircea Cartarescu, romeno que costuma aparecer bem cotado para o Nobel de Literatura em casas de apostas.
Mas o que faria o leitor topar uma jornada de quase 800 páginas pelo reino da desolação e da melancolia? Perambular por uma Bucareste decrépita, arruinada, o lugar mais deprimente do mundo? Conviver por dias e mais dias com um personagem frustrado, rancoroso, profundamente infeliz, desprovido de qualquer vestígio de esperança?
Quem lê Cartarescu sabe a resposta. Entre reflexões existenciais, questionamentos sobre a arte, revelação de uma depressiva Romênia comunista, escolhas ousadas e extravagâncias que desnorteiam e surpreendem —além de excessos que resultam em passagens ocasionalmente modorrentas, é verdade; esqueça o comedimento e a precisão—, não demora para perceber que estamos diante de um escritor gigante.
Ter um poema achincalhado numa roda de leituras com outros poetas faz o protagonista de "Solenoide", publicado por aqui pela Mundaréu no final de 2024 com tradução de Fernando Klabin, virar a cara para a literatura. Tenta se afastar da arte, mas jamais consegue. Amargurado, passa a vida remoendo o que poderia ter sido e amaldiçoando o que de fato é.
Professor de romeno, celebra ficar um tempo sem pegar piolhos. Trabalha numa escola onde a biblioteca é um lugar podre a ser evitado. Vive lidando com as provocações de criaturas que batem "em nosso peito", mas que "são numerosas e atacam em vagalhões". Faz questão de tentar pisotear a arte:
"A literatura é uma máquina que produz primeiro felicidade, depois decepção. Após lermos 10 mil livros, não podemos deixar de perguntar: por onde esteve minha vida todo esse tempo?", reflete e nos faz refletir esse sujeito de difícil convivência.
Em "Solenoide", Cartarescu é ainda mais radical ao explorar obsessões apresentadas em "Nostalgia", outra preciosidade publicada no Brasil pela Mundaréu com tradução de Klabin. Ponto central de sua literatura, uma dessas obsessões é a bagunça de camadas que compõem aquilo que entendemos como real.
A todo momento Cartarescu nos lembra que há muitas dimensões além daquelas escancaradas na nossa cara. O que podemos ver e tocar é tão real quanto os sonhos, as alucinações, as ficções, os delírios e as múltiplas formas de enxergar, interpretar e organizar o mundo, elementos fundamentais —e muitas vezes desprezados— para compor isso que convencionamos chamar de realidade.
Quem se aventura pelas páginas de Cartarescu faz uma pausa para refletir ao trombar com frases como esta: "O mundo unânime, carinhoso e tangível num lado da moedinha, e o mundo secreto, íntimo, fantasmagórico, o mundo onírico da minha mente, no outro. Nenhum é inteiro sem o outro".
Ou esta: "Escolhemos entre o caos de possibilidades, probabilidades, irrealidades e estranhezas uma única estrutura que chamamos de 'realidade' e com que contamos para poder viver".
O leitor também se pega matutando a respeito do que é a vida. Os labirintos de Borges, os absurdos de Kafka e o aceno à infância de Ferenc Molnár e o seu "Meninos da Rua Paulo" são referências que ajudam a entender o mundo de Cartarescu. Esses nomes estão explicitados ao longo do romance, inclusive.
Outro autor que me vem à cabeça ao ler o romeno é Albert Camus. Não pelo estilo, longe disso, mas pela maneira como a literatura de Cartarescu revela muito do espanto diante da vida. De quão nonsense é estarmos neste mundo trabalhando, brigando, amando, inventando histórias, acreditando em mitos ou fazendo sabe-se lá o que tendo como única certeza o nosso final.
Procuramos por distrações antes que a morte, inevitável, nos alcance. E poucas coisas funcionam tão bem para dar algum sentido à vida quanto a arte. O protagonista de "Solenoide" sabe disso, por mais que procure negar. A literatura tem um papel crucial para motivar a sua existência, nem que seja graças à força gerada pelo ódio que passa a nutrir após ser avacalhado com o seu poema.
Outras pontas conectam "Solenoide" ao que já havíamos encontrado em "Nostalgia". A androginia do personagem, criado pela mãe como se fosse uma menina. As violências da infância e o temor diante do futuro. Os conflitos de uma sociedade sob um regime autoritário que busca controlar os passos e crenças de cada indivíduo. Os portais que levam tanto os personagens quanto o leitor para um universo distorcido.
Enquanto revisitava "Solenoide", pensei algumas vezes em como seria bom poder parar tudo apenas para me dedicar à releitura de Cartarescu. É uma sensação despertada por raros autores, aqueles que nos oferecem livros fascinantes, extraordinários, transcendentes.
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