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Opinião

Contra o 'mal da indiferença cívica', escritores se unem pela Palestina

"Existe uma doença do espírito: o mal da indiferença cívica. Todos estamos moralmente doentes".

O mal da indiferença cívica, o adoecimento moral. A frase é do autor de "Ensaio Sobre a Cegueira" e não está aqui por acaso. A Fundação José Saramago encabeçou e lançou uma carta aberta pelo cessar-fogo na Palestina. O apelo também clama pela entrada de ajuda humanitária nos territórios ocupados, libertação de todos os reféns e resolução política das áreas ocupadas por Israel (ocupações vêm de décadas e seguem acontecendo inclusive na Cisjordânia, importante lembrar).

Centenas de escritores de língua portuguesa já assinaram a carta divulgada pela fundação. Gente como Lídia Jorge, Chico Buarque, Mia Couto, Valter Hugo Mãe, Djaimilia Pereira de Almeida, José Eduardo Agualusa, Ondjaki, Itamar Vieira Júnior, Jeferson Tenório, Tatiana Salem Levy, Gregorio Duviver, Julián Fuks, Luiz Schwarcz, Noemi Jaffe e Natalia Timerman.

Movimento é semelhante ao feito por mais de 300 autores de língua francesa. Annie Ernaux e Le Clézio, vencedores do Nobel, estão ao lado de Leïla Slimani, Éric Vuillard e Mohamed Mbougar Sarr (leiam "A Mais Recôndita Memória dos Homens", que saiu pela Fósforo com tradução de Diogo Cardoso!) num artigo em que repudiam o genocídio em Gaza.

Números falam em mais de 54 mil palestinos mortos por Israel em menos de dois anos. Pipocam nas redes os vídeos de puro terror, de desumanidade atroz contra um povo que sequer tem o que comer. Notícias contam histórias de famílias inteiras explodidas, assassinadas, dizimadas. Casas, escolas, hospitais, bibliotecas, centros culturais, praças, teatros, lugares religiosos, bairros, cidades inteiras... Tudo pulverizado.

Sabemos: o que nos chega é apenas uma fração de todo o inferno vivido por quem está na Palestina, violentada desde muito antes de outubro de 2023. Enquanto tem jornalista que deve estar abarrotado de milha de tanto viajar para a Ucrânia, ninguém vai até Gaza. E, se for, as chances de terminar com um tiro na testa ou foguete israelense na cabeça são enormes, como já aconteceu com diversos colegas.

O que temos acesso, no entanto, é mais do que suficiente para que todos os dias sejamos atordoados por uma mistura estranha e às vezes contraditória de tristeza, indignação, revolta, desolação e impotência. Pressões públicas, gritos em redes, denúncia dos descalabros e gestos simbólicos têm a sua importância, como muitos escritores mostram em cartas como as mencionadas ou em outros berros públicos.

Admiro os autores que se posicionam diante do massacre. Profissionais da palavra sabem que chamar o que acontece em Gaza de guerra é de um cinismo ímpar; não há guerra com tamanha disparidade de forças. O que há é carnificina com ares de genocídio e objetivo de limpeza étnica bradado por metade dos políticos de Israel —inclusive seu primeiro-ministro—, país sempre mimado e apoiado pela maior potência bélica do mundo, agora liderada por um maníaco alaranjado.

"O martírio do povo palestino, a matança diuturna de crianças, jovens e adultos pelo Estado ocupante e por seus associados horrorizam o mundo. E todos —exceto as mentes doentias e cultoras da morte— sabem que o que está em jogo é a humanidade e seu bem comum: a liberdade. Pensei, com uma ponta de inveja, que eu gostaria de ter escrito este livro, mas me resignei a ser um leitor e a indicá-lo com entusiasmo a amigos e conhecidos".

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São palavras de Milton Hatoum, um dos maiores escritores brasileiros em atividade e pessoa que há tempos busca abrir os olhos de mais gente para os horrores aos quais os palestinos vêm sendo submetidos há décadas. O apelo à humanidade está na apresentação de uma nova edição de "Tornar-se Palestina", da chilena Lina Meruane, que retornará às livrarias brasileiras numa versão ampliada, agora com uma terceira parte chamada "Rostos em Meu Rosto" (Relicário, tradução de Mariana Sanchez).

Como Milton, é com entusiasmo que indico esse livro, uma mistura de ensaio com narrativa de viagem que escancara o estado de exceção vivido por palestinos. Outros livros entram nas minhas indicações: "Homens ao Sol", de Ghassan Kanafani (Tabla, tradução de Safa Jubran), "Detalhe Menor", de Adania Shibli (Todavia, também traduzido pela Safa), "Quero Estar Acordado Quando Morrer", de Atef Abu Saif (Elefante, tradução de Gisele Eberspächer).

Elefante que acaba de publicar "Brevíssima História do Conflito Israel-Palestina", obra do historiador Ilan Pappe, especialista na trajetória contemporânea de Israel. É um livro que vem sendo bastante elogiado por leitores de confiança.

Num artigo publicado pela editora, Pappe questiona a indiferença de países ocidentais, especialmente europeus, em relação ao sofrimento dos palestinos. Levantando a possibilidade do pânico moral, do medo de muita gente manifestar a indignação frente ao horror temendo represálias, o autor diz:

"Ignorar o genocídio na Faixa de Gaza e a limpeza étnica na Cisjordânia só pode ser descrito como intencional e não como uma ignorância. Tanto as ações dos israelenses como a linguagem que as acompanha são visíveis demais para serem ignoradas, a menos que políticos, acadêmicos e jornalistas decidam fazê-lo".

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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