Página Cinco

Página Cinco

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Reportagem

Flip: Alia Trabucco Zerán e as diversas formas de escrever sobre violência

Para Estela, empregada doméstica que protagoniza "Limpa", ficção mais recente da chilena Alia Trabucco Zerán, a morte sempre anda em trio. Uma perda é sucedida por outra, que logo leva a mais um vazio.

Num dos momentos tristes do romance, a morte parece simbolizar a perda da ternura possível. Da chance de a personagem principal ter uma companhia naquela casa onde passa os seus dias entre os afazeres do trabalho, o zelo pelos patrões e o quartinho onde deve se abrigar nas poucas horas vagas.

É uma morte que faz com que lembremos de Graciliano Ramos. Compartilho com Alia essa conexão. Falo de como aquela passagem de "Limpa" (Fósforo, tradução de Silvia Massimini Felix) me remeteu a uma das cenas mais tristes da literatura brasileira.

Após ouvir meu comentário, Alia diz admirar o trabalho de Graciliano, especialmente "Vidas Secas". "É um dos meus livros favoritos. É um dos romances mais desoladores da literatura latino-americana e mundial. É um livro central na minha biblioteca", conta.

Aos 41 anos, Alia virá pela primeira vez ao Brasil daqui a algumas semanas. Será uma das convidadas da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, que neste ano acontecerá entre os dias 30 de julho e 3 de agosto. A chilena é dona de uma obra em que a morte, especialmente a morte violenta, é tratada de forma distinta de livro para livro. E há mais ecos de literatura brasileira em seus escritos.

Estela e Macabéa

Desde o começo, sabemos que uma das mortes de "Limpa" será a da filha dos patrões de Estela, garotinha traiçoeira que a empregada doméstica ajudou a criar. Ao se dirigir a um interlocutor oculto, Estela dá o seu depoimento sobre tal fim.

Recusa-se, no entanto, a se restringir à fatalidade. Precisa repassar a sua história para que todos possam entender melhor o que ocorreu. "Imploro para que não se exasperem. A vida tende a ser assim: um pingo, um pingo, um pingo, um pingo e depois nos perguntamos, perplexos, como é que estamos encharcados", lemos em certo momento.

É a chance de narrar a própria vida a, raridade, ouvidos atentos.

Continua após a publicidade

Estela precisou se distanciar de sua família do sul do Chile e entregar seus dias a satisfazer os caprichos dos empregadores em Santiago. A partir de sua voz que Alia esmiúça uma das questões de classe que causam incômodo não só no Chile, como bem sabemos. Falo do papel das empregadas domésticas, de seus direitos e deveres, sonhos e obrigações, ambições e frustrações.

"É um trabalho que incomoda socialmente porque é feito por pessoas invisibilizadas e toca em pontos de classe e de gênero que continuam não resolvidos", diz Alia. "Foi um desafio construir um romance narrado em primeira pessoa por uma trabalhadora de uma casa particular. Buscar essa voz que me trazia perguntas e desafios para os quais eu não tinha respostas", complementa.

Estela pode ser vista como uma irmã literária de Macabéa, também empregada doméstica, aquela que "pertencia a uma resistente raça anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito", como escreveu Clarice Lispector. "A Hora da Estrela" esteve em sua escrivaninha ao longo de toda a escrita de "Limpa", conta Alia.

"Volto a Clarice, que é muito lida na América Latina, não só pela ficção. Leio também como autora de não ficção, alguém que tinha um olhar muito singular sobre o seu tempo, sobre problemas que não têm a ver apenas com o Brasil", comenta a chilena sobre a influência.

Homicidas

"Limpa" está profundamente ligado a outro livro de Alia: "As Homicidas", publicado por aqui em 2023 (também pela Fósforo e com tradução de Silvia Massimini Felix). Trabalho de não ficção, nele a chilena revira arquivos e vasculha memórias para escrever ensaios sobre quatro mulheres que cometeram assassinatos.

Continua após a publicidade

Um aspecto chama a atenarção no olhar de Alia para essas histórias. Foram crimes que chocam as pessoas não apenas pelas mortes em si, mas por terem sido executados por mulheres, subvertendo esteriótipos associados ao gênero, como se fosse uma surpresa constatarem que maldade e violência não são traços exclusivos dos homens.

"A simples ideia de uma mulher dominando um homem no terreno da violência, que é cultural e simbolicamente masculino, causaria reações raivosas dentro e fora dos tribunais", escreve a autora em um dos ensaios. "Mais uma vez, as transgressões à lei do gênero antecipam a transgressão penal", constata em outro.

Uma das motivações de Alia nessa empreitada foi justamente romper com reduções feitas e exigidas de cada gênero:

"O humano tem uma ampla variedade de afetos. Um homem pode expressar sua fragilidade e uma mulher, sua raiva. Quando uma mulher expressa a sua raiva, a sociedade tenta colocá-la de volta no que seria o seu lugar, um lugar de passividade, submissão. As mulheres, quando cometem um assassinato, não transgridem apenas a lei penal, mas também a feminilidade [que lhes são incutidas]", diz a autora em nossa conversa.

Um dos casos investigados por Alia em "As Homicidas" é o de María Teresa Alfaro, empregada doméstica com uma história que continuou a revirar sua cabeça mesmo após a escrita do ensaio.

"Foi um caso que me perturbou não só pelo tabu que é o assassinato de crianças. Mas também por ser um crime que recebeu muita atenção em sua época [década de 1960], mas depois não foi retomado em nenhuma obra".

Continua após a publicidade

Coube à escritora, então, partir do que fez María Teresa Alfaro para criar a história de Estela, que em nenhum momento deve ser vista como mera projeção de sua correspondente real. Em "Limpa", as mortes aparecem de maneiras muito diferentes daquelas que encontramos em "As Homicidas".

Formas para a violência

Como dito, a morte factual e as mortes simbólicas —o fim de uma era, de uma fase da vida, de projetos políticos, a morte do futuro?— estão no coração da obra de Alia. "A morte é um tema central da literatura porque é um tema central do humano. Meus três livros abordam a morte por certa perspectiva, que é a da violência".

Romance de estreia de Alia, "A Subtração" foi publicado em 2014 e chegou ao Brasil em 2020 pela Moinhos (outro traduzido por Silvia). Sua versão em inglês foi finalista do The Man Booker International Prize de 2019. Nele, o leitor acompanha a jornada dos jovens Iquela, Felipe e Paloma, filhos de militantes que se engajaram contra a ditadura chilena.

O trio sai de Santiago e ruma para Mendoza, na Argentina, para tentar encontrar o corpo da mãe de Paloma. No livro, nos deparamos com o Chile da redemocratização e com a geração que veio depois da ditadura de Pinochet, mas que segue assombrada pelos sequestros, desaparecimentos, assassinatos e demais horrores praticados pelos militares.

"Limpa" é um relato em primeira pessoa no qual conhecemos desde o início o drama que aparentemente move a história —aos poucos percebemos que é no avolumar de gotas e mais gotas a encharcar a protagonista que está a parte crucial da trama. "As Homicidas" reúne ensaios em que há espaço para imagens, poemas e até para a criação ficcional. E "A Subtração" é um romance fragmentado, com intensa alternância de vozes.

Continua após a publicidade

Por mais que certas obsessões estejam presentes nos três títulos, o estilo de Alia parece se metamorfosear de livro para livro, seguindo a premissa de que cada história exige uma forma que seja condizente com aquilo que está sendo contado.

"Qual forma terá um texto? Essa é a questão literária a ser respondida na escrita. Seria impossível 'A Subtração' ter um texto convencional, com começo, meio e fim, narrado em terceira pessoa. A fragmentação era fundamental para tentar construir um relato sobre a violência da ditadura", exemplifica.

É durante a própria escrita que muitas vezes o caminho ideal se revela. Não basta apenas que a escrita funcione, é preciso que faça sentido naquele mundo que está sendo criado ou recriado. "Como narrar a violência da ditadura? Um romance estruturalmente perfeito, linear, não tem sentido. Então busco outra forma. Por isso meus livros são formalmente muito distintos, e me interessa que seja assim".

Assine a Newsletter da Página Cinco no Substack.

Você pode me acompanhar também pelas redes sociais: Bluesky, Instagram, YouTube e Spotify.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.