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Opinião

Pepe Mujica: entre Dom Quixote e as borboletas de García Márquez

Horas após trocarmos mensagens sobre a morte de Mujica, a Bel, minha esposa, voltou a escrever. Disse que o chaveiro do carro tinha caído. Quando roubaram nosso carro antigo, no final do ano passado, uma preocupação menor que tive foi com esse chaveiro.

Lembrança de uma viagem ao Uruguai feita pela irmã e pelo cunhado, tenho afeição pelo simbolismo. É um Fusca azul com o nome de Pepe na lataria. Um elo afrouxou bem no dia em que Pepe Mujica, ex-presidente do país que tanto gosto, se foi. A vida tem dessas coincidências.

É provável que Mujica tenha sido o líder político mais unânime da minha geração. Íntegro, transparecia coerência entre o que pregava e a vida que levava. Ensinou a importância de ter uma causa, de ter consciência daquilo que realmente gostamos ou amamos.

Levantar da cama preocupado apenas em acumular dinheiro é cilada das grandes. Enrascada em que cada vez mais gente parece estar metida, em que pese a evidente necessidade de um cascalho no bolso. Merecemos ir além da sobrevida, mas isso não significa nos reduzirmos a meros consumidores.

Em 2018, no sábado anterior ao segundo turno das eleições presidenciais, fui com a Bel assistir ao "Uma Noite de 12 Anos". É um filme sobre o período em que Mujica passou na prisão, sendo alvo de torturas e um tempo longuíssimo isolado de outros seres humanos.

Quando não havia a comida servida com bitucas de cigarro ou misturada com terra, enganava a fome e a sede com larvas e urina. Dentre as maldades que lhe infligiram, foi impedido de ter acesso a livros durante sete anos.

"'Por sete anos fiquei sem poder abrir um livro', contou o uruguaio em 2014, quando morreu Gabriel García Márquez. 'Eu sonhava com as borboletas de Gabo', disse. 'Quando eu estava muito sozinho, minha imaginação buscava suas borboletas? Quando eu estava muito sozinho e tentava conversar com o homem que levava dentro, uma das coisas eram as imagens de Garcia Márquez'", lembrou o colega Jamil Chade.

O mais incrível foi Mujica ter sobrevivido sem enlouquecer. Parte do que passou está no livro "Memórias do Calabouço", publicado por aqui pela Rua do Sabão (tradução de Ana Helena Oliveira e Paloma Santos) —escrevi a respeito aqui.

A obra é uma conversa entre Mauricio Rosencof e Eleuterio Fernández Huidobro, companheiros de Tupamaros que foram sequestrados pelo exército uruguaio, então à frente da ditadura instaurada no país, presos junto com Mujica e submetidos atrocidades semelhantes.

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Mas falava do filme. Naquela noite pré-eleições, deixamos o cinema abalados pelo que vimos e pelo que, já sabíamos, nos aguardava. "The Sound Of Silence", música mais marcante de "Uma Noite de 12 Anos", tornava-se ali a trilha que me vem à cabeça diante de toda mediocridade e truculência bolsonarista.

Mujica contrastava com a mentalidade que parece dominar o mundo. Era um símbolo da coletividade, da busca por dignidade, da luta por justiça social. Algo muito diferente desse individualismo que faz cada vez mais sucesso pelas esquinas reais e virtuais.

A preocupação por uma vida melhor para todos foi trocada por um egoísmo baseado no "o que importa sou eu, o resto que se vire". E assim todos vamos nos massacrando um pouco mais a cada dia.

Coisa rara, o ex-presidente, antigo guerrilheiro e eterno jardineiro falava de amor sem ser sentimentalóide. Zero piegas, demonstrava esse amor na relação com a esposa, com a chácara, com as plantas e com Manuela, sua cachorrinha de três patas. Emanava ternura.

Como Eduardo Galeano, outro uruguaio com quem gostaria de comido uma medialuna, Mujica sabia que a utopia nos motiva, nos leva adiante. Mesmo sem alcançar tudo o que almejamos, pelo menos a utopia nos move para um lugar melhor, nos fez viver com propósito, de forma mais completa.

No começo do ano, o jornalista Pablo Cohen fez uma visita a Mujica em sua chácara. Pepe, bem debilitado, seguia com as leituras. Na ocasião, revisitava nada menos do que "Dom Quixote". "Aqui está tudo, é insuperável", comentou com Cohen sobre clássico absoluto de Miguel de Cervantes.

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Mujica foi uma figura quixotesca, o que sempre deve ser encarado como elogio dos maiores. Choramos sua morte não apenas pela perda de um companheiro incrível, mas também por constatar que, com ele, se vai mais um pouco da utopia por um mundo mais justo, igualitário e menos aos pés de quem já tem muita grana e poder.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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