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Bergoglio barbeou Borges; papa Francisco foi um leitor admirável

Papa Francisco, ou Jorge Mario Bergoglio, era um grande leitor. No papado, mantinha entre suas referências autores como Dostoiévski, Dante Alighieri, T. S. Eliot, Proust e, claro, Jorge Luis Borges, conterrâneo e parceiro de outras jornadas.

Prosa e poesia são formas fundamentais para o amadurecimento de qualquer sujeito, compreendia Bergoglio. Como professor, sacou que a leitura precisa ser, acima de tudo, um momento de prazer. Um prazer que, pela sua complexidade, aprimora a experiência do sujeito neste mundo.

O homem via o livro como um oásis nos momentos de tédio ou solidão. Um camarada que ajuda a contornar o cansaço, a desilusão, os fracassos. Um aliado capaz de proporcionar um sossego para a alma que, vejam só, nem a oração é capaz de oferecer.

Afirmou isso numa carta sobre o papel da literatura na educação que publicou há pouco tempo, já no final da vida, após mais de década como maior líder da Igreja Católica.

Nela, disse ainda que o menosprezo à literatura não traz boas perspectivas. Leva ao empobrecimento intelectual e espiritual, priva os não leitores de um acesso privilegiado ao cerne da cultura e ao coração dos homens.

"Quando se lê uma história, graças à visão do autor, cada um imagina, do seu jeito, o choro de uma jovem abandonada, a idosa que cobre o corpo do neto adormecido, a paixão de um pequeno empreendedor que tenta ir diante apesar das dificuldades, a humilhação de alguém que se sente criticado por todos, o rapaz que encontra no sonho a única saída para a dor de uma vida miserável e violenta", registrou Francisco.

Também escreveu: "Uma obra literária é um texto vivo e sempre fértil, capaz de falar de novo e de muitas maneiras, capaz de produzir uma síntese original com cada leitor que encontra. Este, enquanto lê, enriquece-se com o que recebe do autor, mas isso permite-lhe, ao mesmo tempo, fazer desabrochar a riqueza da sua própria pessoa, pois cada nova obra que lê renova e expande o seu universo pessoal".

Bergoglio publicou diversos livros em vida. São obras reflexivas, teológicas e de fundo histórico. Na Itália, acaba de sair uma antologia reunindo reflexões que escreveu sobre essa importância que via na literatura para a formação de qualquer pessoa. O livro se chama "Viva la Poesia!", foi organizado por Antonio Spadaro e editado pela Ares.

Como faz pouco tempo que foi relançado um outro livro envolvendo diretamente Bergoglio: a coletânea de histórias breves "Cuentos Originales". Esta tem valor acima de tudo pela ligação entre o futuro papa, então professor, e um dos maiores escritores da história. Falo novamente de Jorge Luis Borges.

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Em meados da década de 1960, Bergoglio dava aulas de literatura num colégio de Santa Fé, no interior da Argentina. Tinha o hábito de convidar alguns autores para conversarem com os alunos sobre temas específicos. Resolveu arriscar. Convidou Borges, já um gigante. E o autor de "O Aleph" topou sair de Buenos Aires e rodar uns 500 quilômetros para encontrar os jovens.

Com a visão bastante comprometida, Borges ouviu os alunos lerem alguns de seus contos. Pelo visto, gostou. Tanto que se propôs a fazer com que fossem reunidos na coletânea publicada com prólogo que ele mesmo assinou.

O encontro entre o grande escritor e os alunos do futuro papa rendeu um livro e também uma história saborosa. Ao buscar o convidado no hotel, Bergoglio ouviu de Borges o chamado para que subisse ao quarto. No cômodo, a solicitação peculiar: que o professor desse uma força para barbear o escritor de parca visão.

Um momento banal naquela metade de década de 1960, mas que hoje forma em nossas cabeças a cena de um dos maiores escritores da história sendo barbeado por um papa. Uma gentileza de um grande leitor para outro grande leitor.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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