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Opinião

Dor na ternura: os animais que ficam para trás quando um país colapsa

Uma tristeza compartilhada pela escritora Gioconda Belli retumba na minha cabeça.

Gioconda é nicaraguense e há três anos vive em Madri. Rumou para a Espanha depois que, durante uma viagem de férias, num episódio de perseguição política, soube que o governo de Daniel Ortega havia confiscado sua casa.

Para Gioconda, a maior tristeza de toda essa situação foi ter sido forçada a abandonar seus cães. Um deles morreu há pouco, o outro foi acolhido por amigos. "Ele está bem. Quem não está sou eu, por sua ausência e porque sei que nunca voltarei a vê-lo", disse a nicaraguense à Folha de S.Paulo.

A dor de Gioconda, escritora que lança no Brasil "A Mulher Habitada" (Rosa do Tempo, tradução de Enrique Boero Baby), livro original de 1988, é consequência do degringolar da Revolução Sandinista. Um exemplo de como truculências políticas provocam impactos de diferentes escalas.

Ao conhecer a história Gioconda, lembrei imediatamente de outro livro recém-publicado por aqui. Em "Simpatia", que inaugura a Coleção Capitais e Cafundós, da Incompleta (tradução de Raquel Dommarco Pedrão), o venezuelano Rodrigo Blanco Calderón olha justamente para os cães para escrever a respeito do colapso vivido por seu país.

Na obra, o protagonista recebe a promessa de uma boa herança junto com a missão de montar um abrigo para cachorros abandonados, os que ficaram para trás após tutores debandarem de uma Caracas cada vez pior para se viver. É o ponto de partida para um bom romance que sabe trabalhar com uma história para, aos poucos e muitas vezes de forma indireta, tratar de assuntos candentes.

Na literatura de Calderón, nos deparamos com mais uma revolução que se volta contra os seus, com corrupção, sacanagens de militares, boas doses de cinema e um tanto de história da América Latina. Na parte dos animais, apesar de uma passagem ou outra capaz de provocar revolta, é uma obra menos dolorosa do que o leitor pode imaginar num primeiro momento.

A encruzilhada, contudo, está ali durante toda a narrativa e me deixa especialmente encucado: o que faria se o Brasil caminhasse para uma ruína dessas? Flertamos com isso há pouco, com a ascensão da extrema-direita e uma tentativa frustrada de golpe de estado. A coisa pode voltar. Nunca estamos a salvo de governos autoritários.

Quem divide a vida com camaradas de diferentes espécies —não limito minha empatia aos cachorros— sabe que procurar por outro canto sem levá-los juntos não é uma opção a ser considerada.

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Às vezes, no entanto, o que resta não é uma alternativa pensada, ponderada e arquitetada. Saber disso já me deixa com uma sensação de vazio, me faz compartilhar a tristeza de Gioconda. Arbitrariedades políticas são capazes de esmagar nossos sentimentos, nos afastar daquele amor que parece ser o mais puro de todos.

Ou algo ainda mais difícil de se encontrar. E aqui puxo "A Crônica Não Mata", livro fresquíssimo de Luís Henrique Pellanda (Arquipélago). Num dos textos, ao escrever sobre suas companheiras, Pellanda extrapola o amor:

"O amor, para mim, é algo complexo, reservado somente ao gênero humano, um sentimento ambíguo que sempre me vem eivado de uma carga mais ou menos incômoda de angústia. Não. O que sinto por minhas gatas é algo mais raro que o amor, e quem sabe mais puro. É ternura".

Cuidemos bem de nossas ternuras.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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