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Opinião

Ruth Guimarães, o boteco e as formas de um bêbado sucumbir

"Clube de pobre é boteco. Se quiserem fazer um recenseamento, verão que há mais botequins que lojas e armazéns, mais que igrejas, contando em global todas as religiões, mais que farmácias."

Passeio por "Marinheira no Mundo" (Primavera Editorial), livro que reúne crônicas de Ruth Guimarães publicadas, sobretudo, no extinto Valeparaibano. O jornal que circulava em São José dos Campos e no Vale da Paraíba, aqui no estado de São Paulo.

Autora que vem sendo redescoberta, Ruth é conhecida principalmente pelo romance "Água Funda", publicado em 1946. É, hoje, um dos livros da lista da Fuvest.

O seu Vale da Paraíba, o turismo religioso tão caro à região, o queijeiro, as congadas, o folclore, a relação com as palavras, o olhar para o Brasil... São muitos os assuntos tratados por Ruth em seus textos cotidianos. Me atenho a uma deles: "Clube de Pobre".

Tenho alguma intimidade com o ambiente homenageado na crônica, o boteco. Desconfio já pendendo para a certeza que hoje farmácias e igrejas andam mais populares do que botequins, pelo menos em algumas regiões da cidade. Da minha parte, só lamento.

Para Ruth, ou para a narradora da crônica, bom mesmo é o boteco do João da Quadra. E bom de copo é o velho Morgado, aposentado que segue trabalhando, fazendo seus bicos. Ali pela hora do almoço, passa no João e dá uma bicada.

"Não cospe, não joga pro santo, passa as costas do mãozão na boca, ele é um homenzarrão, e vai embora. Dá mais umas voltas, de tarde manda outro liso. Bêbado? Que esperança! Não falei que é grande? Tem capacidade."

Mas outro dia, um domingo, conta a narradora, Morgado arrumou um parceiro de copo. Um sujeito pequeno, encolhido, "meio a jeito de figo seco". Beberam. Logo os outros notaram que o parceiro do homenzarrão não estava acostumado com aquele ritmo. Insistiu. Engasgava, sufocava, tossia, e sempre topava outra dose.

Adianto-me porque isso daqui é uma coluna, não a reprodução integral da ótima crônica. Uma hora o pequeno falou firme e decidiu que precisava ir para casa. Aí o vexame aconteceu:

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"Deu uns dez passos, duro como um pau. Foi direto até a porta e lá caiu de borco, se esparramando no chão. Aquele não levantava mais..." A surpresa é que não caiu sozinho. Naquele dia, o velho Morgado também sentiu o baque, algo inédito por ali.

Há bêbados que caem de costas, uns vão de cara, há quem rodopie, outros caem sentado depois de tanto cercar frango, enumera Ruth. Morgado foi mais original. "Foi se abaixando, se abaixando, diminuindo, chegou o momento que, de pé que tinha estado, ficou seguro no balcão só pelo queixo."

Já vi breacos sucumbirem de todas as formas elencadas por Ruth. Ou quase todas. Desmanchar até ficar pendurado no balcão pelo queixo, só Morgado mesmo.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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