'Ainda Estou Aqui': o problema é que eles também seguem aqui

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Achei bonito ver Selton Mello comentar que o Alzheimer de Eunice Paiva poderia ser encarado como uma metáfora para o esquecimento que acomete parte do país.
O ator falou disso logo após "Ainda Estou Aqui" receber três indicações ao Oscar deste ano: melhor filme, melhor filme internacional e melhor atriz com Fernanda Torres.
O espaço dedicado ao Alzheimer e a forma como o mal está costurado na trama é uma das principais diferenças entre o filme de Walter Salles e o livro de Marcelo Rubens Paiva, onde o diretor foi buscar a história.
Talvez me atenha mais à versão literária de "Ainda Estou Aqui", publicada pela Alfaguara em 2015, em outro momento. Mas é belo - doloroso, claro, mas belo - o contraste entre as lembranças de Marcelo, as passagens familiares e a perda de memória de Eunice, a grande personagem da história.
Durante a ditadura militar, capachos sequestraram, torturaram e sumiram com o corpo do ex-deputado Rubens Paiva, casado com Eunice e pai de cinco filhos. Filme e livro mostram o abalo da família com o desaparecimento e a luta durante décadas para que o horror estatal fosse reconhecido. O corpo do homem barbarizado por oficiais do Estado até hoje não foi encontrado.
Achei bonita a fala de Selton, mas também achei um pouco ingênua. Quem dera nosso único problema fosse a falta de memória. Há outras mazelas que fazem com que discursos golpistas e lambeção a botas ainda angariem multidões. A falta de punição aos criminosos fardados do passado é uma delas. Outra é a sordidez.
Muita gente sabe direitinho o que aconteceu durante a ditadura. Sabe e aplaude. Não falta memória, falta humanidade.
Fui assistir "Ainda Estou Aqui". Uma sessão horrível, diga-se. Nunca vi tanta gente se sentindo confortável para pisar em cadeiras, mexer no celular, comentar em voz alta cada cena, papear no meio do filme. Pelo menos pude ir num cinema perto de casa, no Tucuruvi, onde é raro chegar filmes sem um monte de coisas explodindo e gente gritando em inglês.
Deixemos resmungos de lado. O que importa mesmo é a mistura de sensações que o filme despertou naquele momento e ainda desperta. Melhor dizendo, não apenas o filme em si, mas o contraste entre o longa que já levou mais de 5 milhões de brasileiros aos cinemas e o que vemos em nossa sociedade.
Legal ver tanta gente aplaudir "Ainda Estou Aqui" no final da sessão. Estranho, também. Aplaudiam o quê? A fotografia ou a trilha sonora? Não me parece. Manifestavam apoio ao drama de Eunice e a repulsa à ditadura e aos militares? Adoraria crer que sim. No entanto, não me engano, ainda mais numa região da cidade que abraça a direita e a extrema-direita. Aplaudiram porque o filme já vem sendo aplaudido por aí? Provável.
Ainda há um sentimento agridoce em ver um filme como esse ser reverenciado ao mesmo tempo em que uma penca de fardados estão presos e indiciados pelo golpe que orquestraram junto com Bolsonaro, chefe de um governo essencialmente militar. Que aproveitassem o momento para reabrir a Comissão da Verdade, voltar a tratar de forma séria e dura os crimes cometidos por gente do Estado durante a ditadura.
Mas não. Segue proibido qualquer assunto que possa melindrar milicos, esses homens tão sensíveis. E já vejo braços agitados na imprensa para passar pano, limpar a sujeira dessa nova investida de Exército, Marinha e Aeronáutica contra a democracia, como se as forças não tivessem se transformado em agentes políticos cruciais de todo o horror bolsonarista.
Se, no final, algum estrelado não topou o golpe, me parece mais por temor do que encarariam do que por qualquer convicção legalista ou democrática.
Temos uma triste história. Pouco foi feito após a redemocratização e o passado recente confirma: militares que se acham donos do país, eles ainda estão aqui.
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