O que te torna humano? Livro aborda a relação do homem com suas tecnologias

Não existe documento cultural que não seja também uma prova de barbárie.
A afirmação não é minha, como vocês certamente sabem, mas do crítico literário alemão Walter Benjamin, um dos principais intelectuais do século 20. É a ideia de Benjamin que permeia "Membrana", primeiro romance do catalão Jorge Carrión publicado no Brasil (Relicário, tradução de Michelle Strzoda).
É uma ficção científica ousada. No ano de 2100, o leitor é levado ao Museu do Século 21, onde uma inteligência artificial o conduzirá a uma jornada sobre a relação entre a humanidade e as tecnologias por ela desenvolvidas, que acabam por modificá-la.
Fincado no futuro, o museu cristaliza o que rolou há alguns anos, resvala no nosso presente e trata como pretérito as muitas décadas que ainda teremos antes deste século terminar. O que parece iminente hoje —a mistura cada vez maior entre humanos e robôs, por exemplo— surge na escrita de Carrión como algo consumado.
Numa das camadas da trama, encontramos o amor de Karla Spinoza, humana, e Maxi, um assistente de voz, aquilo que costumamos chamar, por enquanto, de inteligência artificial. As fronteiras cada vez mais difusas entre realidade e o que antes víamos como ficção especulativa. O hibridismo entre homens e máquinas. O olhar para o pós-humano. Com esses ingredientes, "Membrana" se aproxima de outro romance recente de língua espanhola, este argentino: "Kentukis", da excelente Samanta Schweblin (Fósforo, tradução de Livia Deorsola).
Algumas perguntas ainda não respondidas de forma satisfatória se levantam: como será essa relação entre humanos e máquinas no futuro, sendo que os limites entre um e outro são cada vez mais tênues? O virtual já é parte crucial do que entendemos com real, mas até onde essa mistura nos levará? Chegará o momento em que apenas o virtual fará sentido, após a implosão de todas as bases que temos para tentar estabelecer um parâmetro de realidade comum entre pares de nossa espécie?
A pós-verdade é assunto do romance de Carrión, que ainda passa pelas violências do estado de Israel e os massacres na Palestina, vislumbra o papel do Brasil nesse mundo futuro e mostra como as mudanças são uma de nossas poucas garantias. Tudo muda, sempre. Abri um sorriso quando descobri que o Camp Nou, estádio do Barcelona, passou a se chamar Lionel Messi.
"Membrana" também é um livro sobre a nossa necessidade de tentar organizar o passado de forma coerente e construir uma narrativa que faça sentido. Garimpamos na realidade caótica e inapreensível elementos que ajudam a criar a ideia de que as coisas aconteceram de certa maneira, em determinada ordem, por conta de ações específicas.
Num museu, entendemos a história a partir do que ali está exposto e da forma como está organizado. Mas e tudo o que ficou para trás, e tudo o que ficou de fora, e as histórias não contadas, ocultadas, perdidas?
"Os começos não existem, mas as tramas precisam muito deles. Tudo sempre acontece ao mesmo tempo, todos os fios são simultâneos e se entrelaçam no caos, por isso os museus escolheram alguns fios e com eles teceram uma trama ininteligível, bem tramada".
Desse emaranhado que nos constitui, tentamos bordar algo minimamente satisfatório, que, porém, não deve ser visto como a única alternativa possível. É um perigo acreditar nas histórias únicas, lembra Chimamanda Adichie.
Jornalista e crítico cultural, Carrión atua em diversas áreas. Dois de seus livros sobre livros já chegaram ao Brasil, "Livrarias" (Bazar do Tempo, tradução de Silvia Massimini Felix) e "Contra a Amazon" (Elefante, tradução de Reginaldo Pujol Filho e Tadeu Breta).
Nessa praia, apresenta a ótima série "Booklovers", na qual busca entender seis cidades a partir do povo da literatura. "Membrana" é uma ficção que se aproxima bastante de "Solaris", podcast com ensaios sobre as relações presentes e futuras entre máquinas, humanos e demais espécies de nosso planeta.
"Todo documento de catástrofe também é o de progresso", lemos em certo momento de "Membrana". É onde o diálogo com Benjamin fica mais explícito. Jorge olha para as catástrofes e progressos do passado recente e vislumbra os do futuro para construir conexões que confluem, se chocam, conflitam, massacram?
Conexões que, ao longo do tempo, estão sempre tecendo e modificando o que somos. É a humanidade que emerge das trocas, apropriações, violações, imposições e roubos culturais. Da soma de "convergências e extinções". Humanidade agora influenciada pelas inovações robóticas.
Um processo marcado por diversas formas de violência, claro, mas que tem suas belezas. Ao ler que "foram os dicionários de tradução, e não os de definição, os verdadeiramente revolucionários", pensamos no quanto a vontade ou a necessidade de compreender ou apreender o outro é um dos pilares de nossa espécie —o que fizemos ou faremos a partir disso já é outro papo.
Fica a pergunta crucial do Museu do Século 21: "O que te torna humano?"
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