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Racismo e educação: Diva Guimarães e o brilho de um momento histórico

Soube da morte de Diva Guimarães enquanto estava de férias. Ela se foi no dia 11 de janeiro, aos 85 anos. Há algumas semanas, sim, mas Diva merece ser lembrada, merece esta pequena homenagem.

Diva protagonizou um dos momentos mais marcantes de toda a história da Flip.

Diferente de gente como Valter Hugo Mãe ou Liudmila Petruchévskaia, outros que tiveram passagens memoráveis na festa de Paraty, ela não estava sobre o palco. Diva era espectadora, uma leitora. E brilhou como raros brilharam ou brilham em qualquer evento literário.

Não brilhou com um discurso fácil nem com uma história bonitinha, nada disso. O ano era 2017 e, sob curadoria de Josélia Aguiar, a Flip tinha escalado algumas mesas de sua programação para um palco aberto a todo o público, voltado para a praça principal. Um convite à integração.

Numa edição que homenageou Lima Barreto e teve Conceição Evaristo como grande nome, outros dois autores papeavam sobre literatura e racismo. Falo da portuguesa Joana Gorjão e do nosso Lázaro Ramos, que chorou muito com o que ouviu de Diva.

Foi no final da conversa entre Joana e Lázaro que ela, uma senhora negra, pediu o microfone. Desculpou-se com os colegas de plateia. Disse que não seria breve. Daí, contou sua história com uma clareza admirável, interrompida apenas pelos aplausos e pela inevitável emoção.

Narrou: cresceu no interior do Paraná e, aos cinco anos, foi levada por freiras para um lugar onde supostamente estudaria. Nada disso. Neta de escravizados, desde a infância foi forçada a trabalhar e vivenciou uma série de episódios repugnantes.

Vivia em Curitiba, onde cotidianamente presenciava episódios de racismo. A discriminação, o preconceito e as imposições culturais atravessaram a sua vida. Não só.

A fé na educação era outra marca de Diva. A mãe insistia: eram os cadernos e os livros que poderiam fazer com que tivesse um destino diferente daquele para o qual parecia fadada.

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Apesar de todas as dificuldades para conseguir estudar, estudou. Superou desaforos e aprendeu a lidar com a raiva — certas vezes tinha vontade de matar, reconheceu. Virou professora. Levou adiante a rebeldia que lhe era cara. Passou a ser considerada subversiva pelos colegas da educação por incentivar alunos a pensarem por conta própria, raciocinarem com autonomia.

Diva comoveu não só a Lázaro, mas toda a multidão que acompanhou o seu discurso ao longo de mais de dez minutos. A fala da educadora viralizou nas redes —foram mais de 17 milhões de visualizações só no Facebook.

Em Paraty, não se falava de outra coisa no final daquela sexta-feira. Todos tinham a sensação de ter presenciado um momento histórico de verdade, desses extremamente raros. Por mais que tenham banalizado a expressão, momentos históricos continuam sendo escassos.

Diva comprovou que uma festa literária tem muito a ganhar quando consegue estreitar a distância entre os que estão sobre o palco e os presentes na plateia. É um equilíbrio dificílimo, mas às vezes o milagre acontece.

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