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O relato de Vanessa Barbara e a força dos 'parças' na literatura

Ali pelo final da minha faculdade, Vanessa Barbara despontou como uma daquelas autoras imperdíveis, ainda mais para estudantes de jornalismo. Não sem razão. Fazia barulho com "O Livro Amarelo do Terminal", trabalho de conclusão de curso que, em 2008, foi editado pela Cosac Naify, casa de prestígio gigantesco. É uma obra excelente, que sigo recomendando aos leitores.

Naquele mesmo 2008, Vanessa lançou "O Verão do Chibo", escrito em parceria com o então amigo Emílio Fraia. Simpático, longe de ser memorável, esse romance saiu pela Alfaguara. Vanessa e Emílio participaram de uma mesa na Flip daquele ano ao lado de Adriana Lunardi e Michel Laub, mediada por João Moreira Salles.

Já era um leitor assíduo. Na época migrava de um emprego na parte administrativa de um escritório de cobranças para um estágio numa revista de iluminação arquitetural. Gostava dos livros, não acompanhava o mercado editorial de perto, mas procurava saber quem eram os nomes que surgiam, em quem diziam para prestarmos atenção.

Estranhei quando, anos depois, o nome de Vanessa Barbara sumiu do radar. "Como escrever um romance atrás do outro sem ser herdeiro?". Foi o que ela questionou recentemente numa entrevista ao Globo, após ser perguntada sobre o intervalo de quase dez anos entre seu recente "Três Camadas de Noite" (Fósforo) e o romance anterior, "Operação Impensável" (Intrínseca).

Vanessa seguiu com o jornalismo, trabalhando para veículos como Piauí e New York Times. Também manteve a sua newsletter, a carismática "A Hortaliça", apesar de algumas longas lacunas. E lançou outros livros que não fizeram o mesmo barulho daqueles inaugurais.

O episódio da Rádio Novelo publicado na última quinta-feira (16), em que Vanessa Barbara narra o fim de seu relacionamento com uma pessoa de bastante influência no meio editorial, ajuda a explicar essa sensação de sumiço da autora entre meados dos anos 2010 e o começo desta década.

Em "CPF na Nota?", Vanessa conta como descobriu que vinha sendo traída pelo seu então marido. Entre estranhar uma nota fiscal e conseguir chegar à verdade, as investigações levaram Vanessa até um grupo de emails onde homens trocavam mensagens que variavam de bobagens quaisquer a manifestações desprezíveis de machismo e misoginia. Os detalhes estão no episódio, na voz e na perspectiva da própria Vanessa.

Boa parte dos integrantes eram pessoas em ascensão. Hoje, são escritores reconhecidos, editores que ocupam cargos importantíssimos em grandes editoras ou gente que trabalha em institutos culturais relevantes. Ali, uma década e meia atrás, já marmanjos com mais de 30 anos, expunham intimidades de mulheres com as quais saíam, conta Vanessa, enquanto se entretinham com infantilidades padrão "powerguido".

Em certo momento de seu relato, a escritora fala que não quer estar perto da linha amarela do metrô. Compreensível, ainda mais levando em conta tudo o que viveu. A linha amarela, nesse caso, serve de metáfora para as panelas literárias. Em São Paulo, elas se avolumam entre Pinheiros, Paulista, Vila Madalena e Vila Buarque, regiões servidas por tal via de transporte público. A autora reconhece: a opção traz certos entraves para a carreira.

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Há diversas formas de se observar o relato de Vanessa. A que está escancarada é a do machismo, da misoginia, da falta de respeito e consideração por alguém que diziam prezar ou amar. Outra é perceber como essa história simboliza um bocado das dinâmicas que influenciam aquilo que entendemos como boa literatura no país.

Fica bem mais fácil crescer na carreira quando se toma cerveja com certas pessoas, troca mensagens com certas pessoas, senta à mesa com certas pessoas. Quando se dá risada das piadas —mesmo sem graça ou ofensivas— feitas por certas pessoas. Ainda que existam infinitas nuances entre as duas reduções, é mais fácil fazer sucesso sendo um autor razoável bem relacionado do que sendo um excelente escritor que não conhece ninguém.

O empurrão dos parças influentes pode ser fundamental para que um nome se estabeleça e um livro faça sucesso. Ou, no sentido contrário, para que alguém desapareça dos holofotes —ou seja levado a se distanciar deles, precise disso para se recompor.

Não é novidade nem algo exclusivo do nosso tempo ou deste meio, longe disso, mas às vezes é preciso se lembrar da nudez do rei.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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