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Papo mofado nas ruas e brucutu no poder: uma história que soa familiar

É uma história comum a muitos artistas. A inspiração mais clara veio do pai, que apreciava a arte e topava alguns bicos para complementar a renda da casa. A grana do trabalho formal, afinal, parecia cada vez mais curta. Os quadros que o homem pintava não faziam lá grande sucesso, mas algum talento para cartazes e ilustrações ajudava a salvar o mês.

O filho tinha seus problemas na escola. Os rumos com os quais sonhava pareciam distantes demais daquilo que via na sala da aula. Gostaria de desenhar, queria ser quadrinista. Os professores não lhe davam essa perspectiva.

Tampouco a vizinhança onde morava parecia afável a seus planos. Quem naquela periferia poderia se interessar por seus traços ou, ainda mais importante, oferecer-lhe oportunidade em alguma revista?

É ao vasculhar o mundo no qual deseja se meter que o jovem descobre outra cidade dentro da cidade onde mora. Melhor organizada, mais dinâmica, ajeitada. Lugar onde um pessoal descolado convive e artistas trocam experiências, influências, camaradagens. Naquele canto efervescente, tão diferente do bairro onde o garoto vive, que as coisas acontecem com mais facilidade para quem quer seguir certos caminhos.

A história apresentada por Ersin Karabulut em "Diário Inquieto de Istambul", primeiro volume de sua autobiografia em HQ (Comix Zone, tradução de Fernando Paz), se passa na capital da Turquia, terra do artista, mas reflete a dinâmica cultural de boa parte das grandes cidades.

Ambientasse o quadrinho na São Paulo onde cresci, talvez o artista descobrisse que viver de arte costuma ser bem mais difícil para quem está no Parque Edu Chaves do que para quem desde sempre habita Pinheiros. E era ainda mais complicado antes da popularização da internet, como é o caso da trajetória de Ersin.

No entanto, não é a mera representação do começo da caminhada profissional do quadrinista que faz com que "Diário Inquieto de Istambul" mereça atenção do leitor. Nascido em 1981, o crescimento de Ersin coincide com o acirramento dos tempos estranhos que a Turquia tem vivido.

Ao seguir com as HQs, os pais do artista dão o alerta: tome cuidado, veja bem com quem você vai se meter. Não são palavras sem lastro. As tensões num país marcado por disputas políticas e questões históricas envolvendo a religião já tinham assustado a família de Ersin.

Numa sequência de transformações e retrocessos, ideias obtusas voltam a brotar, um povo começa com papo mofado sobre patriotismo e a laicidade vai sendo bicada para longe por fiéis bitolados loucos para controlar a vida alheia. Ao mesmo tempo, cresce a animosidade entre vizinhos e se descobre que direitos conquistados não estavam exatamente garantidos.

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Nesse cenário, apostar na arte se torna perigoso não apenas para o bolso, mas também para a vida. Ainda mais quando se trata da arte que mais vale a pena ser feita, aquela que afronta os poderes estabelecidos.

Esse primeiro volume de "Diário Inquieto de Istambul" retrata a guinada que descamba no que vemos hoje na Turquia. Um estado que tenta cada vez menos disfarçar os poderes brucutus de Erdogan. Uma história sobre corrosão social e abandono dos valores democráticos que nos soa perturbadoramente familiar.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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