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Contra os sonhos: Salman Rushdie, Sandman e as facadas na imaginação

Sandman, adaptação da Netflix para o clássico dos quadrinhos escrito por Neil Gaiman - Divulgação
Sandman, adaptação da Netflix para o clássico dos quadrinhos escrito por Neil Gaiman Imagem: Divulgação

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

17/08/2022 04h00

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Salman Rushdie está melhor. As múltiplas facadas que levou na última sexta, durante uma conversa com o público em Nova York, talvez lhe custem um olho. A voz, pelo menos, voltou. O britânico já consegue trocar ideias com o pessoal que investiga o atentado. Segundo seu filho, o humor ácido e sisudo do autor de "Os Versos Satânicos" segue inabalado. Pelo jeito, não serão as facadas de um rapaz de 24 anos que tirarão a vida do escritor jurado de morte há mais de três décadas.

Pensei um tanto em Rushdie enquanto assistia aos primeiros episódios de "Sandman", adaptação para o audiovisual da série de HQs de Neil Gaiman, um dos trabalhos mais venerados da história dos quadrinhos. Cada mídia tem a sua especificidade, por isso não sou fã de análises que buscam discutir se uma é melhor do que a outra ou quão fiel a adaptação é à narrativa original. Mais familiarizado com a literatura de Gaiman, digo que o programa da Netflix em muitos momentos me remete a "Deuses Americanos". Divindades e outros tipos mitológicos ombreando com os homens em nosso próprio mundo é um aspecto recorrente na arte de Gaiman.

A adaptação de "Sandman" tem valido o tempo, ainda que sem grandes deslumbres. Incomoda mesmo é encontrar, mais uma vez, a marca de uma praga contemporânea: a necessidade de explicar demais, de deixar bem claro para o leitor ou espectador que ele realmente entendeu aquilo que acabou de ler ou assistir. A redundância e o didatismo para acolher a audiência de parvos ou inseguros prejudica qualquer livro, qualquer filme, qualquer série.

Não me esqueci de Rushdie. Elemento central na trama de "Sandman" é a maneira como os homens lidam com seus sonhos. Sonhos caídos, abandonados, perdidos pelo mundo, vistos com descrédito. Numa realidade caótica e desenfreada, estão soterradas e silenciadas as fabulações, as possibilidades de se pensar em caminhos originais, em organizações e futuros diversos. Onde a imaginação não tem lugar, a esperança é chutada para longe. Na série, é simbólico quando um jovem Shakespeare ainda em início de carreira se projeta como alguém capaz de criar novos sonhos para estimular a mente humana.

Tudo isso tem muito a ver com Rushdie e com a violência a Rushdie. O ataque ao homem também deve ser visto como um ataque ao que ele simboliza. Em Nova York, não era apenas um corpo sendo esfaqueado. Era uma possibilidade de mundo sendo esfaqueada. Um caminho para a criação sendo apunhalado. A chance de se pensar em novas histórias, em rumos diferentes para o que temos como imutável, levando uma série de facadas: no pescoço, no peito, no olho. São facadas para alarmar: não pense diferente, não ouse vislumbrar outros horizontes, não alimente a imaginação, ignore a fantasia. São facadas taxativas, autoritárias, defensoras de alardeadas verdades tão sagradas quanto frágeis e de dogmas mofados.

Poucas coisas atemorizam tanto poderosos sinistros quanto a possibilidade de pensarmos em mundos diferentes do que esse cheio de certezas e de verdades inquestionáveis. Shakespeare sabia disso. Gaiman e Rushdie sabem muito bem disso.

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