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OPINIÃO

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Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector e a literatura no boteco

A escritora Lygia Fagundes Telles. - Arquivo
A escritora Lygia Fagundes Telles. Imagem: Arquivo

Colunista do UOL

06/04/2022 04h00

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É ótima a história contada diversas vezes, com boas pitadas de humor, por Lygia Fagundes Telles. Certo dia, num congresso de literatura latino-americana na Colômbia, Clarice Lispector virou para a autora de "As Meninas" e falou: isso está muito chato, vamos sair daqui.

Deixaram o espaço onde autores como Mario Vargas Llosa discutiam pormenores do ofício e foram para um bar. Entre uma taça e outra, falaram de homens e sobre os mistérios da criação artística. Entre confissões, Clarice se queixou, não entendia a forma como estudiosos interpretavam a sua obra. Depois, aconselhou a amiga: Lygia, desanuvia essa testa e põe um vestido branco.

Fechada a conta no boteco colombiano, encontraram os colegas saindo do congresso. Estavam todos sérios, suados, lembra Lygia. A sisudez contrastava com a alegria daquelas duas após um bom papo e algumas rodadas de birita.

Congressos e debates têm a sua relevância, mas a mesa do bar é fundamental. Tenho na passagem de Lygia e Clarice um exemplo de como a literatura merece ser tratada no dia a dia: com leveza, prazer, humildade; se pudermos estar de chinelo, juntos de amigos e acompanhados de uma boa bebida, ainda melhor. Em recente artigo para o Estadão, o crítico Silviano Santiago lembrou que a escritora encantava plateias por onde passava graças à paixão que sustentava suas palavras rigorosas e valentes. Paixão é essencial, não a frigidez ou o esnobismo.

Cachaça e porção de torresmo são necessárias mas a vida não se limita a isso. Lygia teve firmeza para driblar a censura com a escrita e bater de frente com os militares em atos contra a ditadura. Ao longo da carreira, deixou claro: via a criação artística como mistério incontrolável, inexplicável, fascinante inclusive para ela, a criadora. Valorizar esse mistério me parece algo importante que vem sendo desprezado ou recusado em nosso tempo de planificação, de falsas objetividades, de engano sobre o controle de tudo.

"É preciso amar o inútil. Criar pombos sem pensar em comê-los, plantar roseiras sem pensar em colher as rosas, escrever sem pensar em publicar, fazer coisas assim, sem esperar nada em troca. A distância mais curta entre dois pontos pode ser a linha reta, mas é nos caminhos curvos que se encontram as melhores coisas", lemos em certo momento de "Ciranda de Pedra", um dos livros mais famosos de Lygia.

Valorizar o caminho curvo está diretamente relacionado com o saber construído de forma quase involuntária pelos botecos da vida. E isso tem mais a ver com literatura do que muita gente pode imaginar.

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