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Dostoiévski, 200 anos: como mergulhar na obra do grande autor russo

Colunista do UOL

26/11/2021 04h00

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- Papo com Raquel Toledo, mestre em Literatura e Cultura Russa, sobre Fiódor Dostoiévski, escritor que nascia há 200 anos.

Destaques do papo com Raquel:

Direita e esquerda
Ele é um dos escritores mais polêmicos. A gente encontra hoje, na internet, uma variedade imensa de leitores de Dostoiévski politizados. À direita e à esquerda, os dois espectros políticos gostam de Dostoiévski, o que torna tudo ainda mais divertido.

Por onde começar?
O Dostoiévski já te joga direto nesse universo da Rússia. Ele é muito russo. Tudo no Dostoiévski é muito russo. Os debates políticos são muito russos. Gosto disso, mas sei que ele pode ser uma porta de entrada meio complicada... Do Dostoiévski, no início, eu apostaria nas novelas, nos textos mais curtos. Gosto muito do primeiro livro dele, o "Gente Pobre", gosto de "O Duplo", segundo livro dele, e também gosto do Dostoiévski humorista, que a gente não conhece tanto, mas ele existe... A minha dica de sempre é: escolha a sinopse que mais te interessa.

Tempo de leitura
Eu gosto dessa ideia desafiadora que a literatura traz, de colocar um freio na nossa velocidade de leitura. E tudo bem. Tem livro que é assim. E quando a gente se dedica a esses livros antigos, e aos russos, dos quais posso falar com propriedade, eles vão demandar esse tempo da gente. E ainda bem. Quantos Idiotas a gente vai poder ler na vida? Se for só um, que seja com muito carinho, com o tempo que ele demora para florescer dentro da gente. Sou bastante partidária dessa leitura mais cuidadosa e menos apressada.

Fascínio pelos russos
Rússia e Brasil são países à margem da Europa. Nós não só à margem da Europa, mas também da América do Norte. E a Rússia é essa Europa de lá, essa Europa distante, essa Europa que é ou não é, que não sabe o quanto de si é oriente, o quanto é ocidente. E o Brasil também é uma dessas economias e dessas culturas marginalizadas, que não têm tanto prestígio. Acho que essas duas coisas nos unem e, em alguma medida, criam uma relação. São dois países que sempre tiveram problemas de desigualdade social muito grande. Dois países que tiveram seus sistemas de trabalho compulsório, aqui a escravidão e lá a servidão. Acho que isso tudo acaba nos aproximando, de alguma forma, historicamente e culturalmente.

Após a prisão
Essa conversão do Dostoiévski é uma conversão não só à monarquia, mas também a um jeito russo de ser. Aí vem todo esse asco que ele tinha em relação à Europa. A Europa que era moralmente defeituosa para ele, a Europa que não tinha fé, que não tinha nada de novo a oferecer. Mas isso não quer dizer que ele era só, por exemplo, antissocialista. Uma das ideias que o Dostoiévski rechaçava absolutamente era o capitalismo. Ele achava o capitalismo uma aberração, algo que ia ser antinatural na Rússia, que é abandonar os pobres à própria sorte. Ele tinha sim preocupações sociais, só não achava que a resposta viria através de uma revolução socialista nem de importar um capitalismo que ele achava absurdo. O Dostoiévski é uma figura muito dúbia, não conseguimos encaixá-lo nesses quadradinhos que temos hoje.

Para começar os cinco elefantes
Tenho problemas com o final de "Crime e Castigo"... Acho um livro que tem um final um pouco brega. Mas até esse final meio catártico é dostoievskiano. Essa breguice faz parte do Dostoiévski. Acho que é um bom começo. E eu também gosto bastante de "O Idiota", principalmente porque, diferente de "Crime e Castigo", com o protagonista que a gente não consegue criar afeição, em "O Idiota" é o contrário. O Príncipe Míchkin, que é o idiota propriamente dito, é um fofo absoluto. A premissa do livro é ótima: essa ideia de um personagem completamente bom, uma pessoa completamente pura, uma mistura de Jesus e Quixote, segundo o próprio Dostoiévski, que tem que encarar a vida na cidade, a questão social.

Verdadeira escolha muito difícil
O Dostoiévski tem uma mente muito fascinante. Ele tem um jeito de olhar para o mundo que é muito único. Acho que enriquece muito a leitura da obra dele quando você entende onde ele quer chegar, por que aquilo está sendo feito. E acho que ele consegue fazer isso de um jeito menos didático, e isso é bom, do que o Tolstói, que em alguns momentos cai na palestrinha... Mas o Tolstói tem textos muito potentes. Gosto muito do "Ressurreição", que foi o último romance dele... Acho que se você não gosta de um livro do Tolstói, não vai gostar de nenhum. Mas se você não gosta do Dostoiévski de "Crime e Castigo", pode adorar o Dostoiévski de "O Sonho de um Homem Ridículo". Tem muito do Dostoiévski, ele é muito múltiplo. E o Tolstói eu vejo com um cara muito mais linear do ponto de vista da produção literária.

Conflitos atuais
O Dostoiévski vai tratar em todos os seus livros, em alguma medida, de como o ser humano lida com coisas que fogem ao seu controle e, principalmente, como é essa vida interna das personagens, muito mais importante às vezes do que a vida externa. "Memórias do Subsolo" é uma excelente prova disso. Como essa vida interna da personagem, confusa, com desejos, com ímpetos, como ela vai lidar com todos esses sentimentos e não vai conseguir solucioná-los. Isso é muito atual. Essa ideia de que existem os limites que são impostos a nós, os limites sociais. E a ficção do Dostoiévski vai trazer personagens que tentam romper esses limites e o que acontece com eles. Ou outros que vão tentar se encaixar em alguns desses limites e vão enlouquecer, não vão conseguir, aquilo vai acabar com eles por dentro.

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