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REPORTAGEM

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'Tudo começa com o medo' - Um trecho do livro de Obama e Bruce Springsteeen

Bruce e Obama - Pete Souza/ Barack Obama Presidential Library
Bruce e Obama Imagem: Pete Souza/ Barack Obama Presidential Library

Colunista do UOL

12/10/2021 10h01

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Dois amigos que conversam sobre diversos assuntos: suas origens, os momentos importantes da carreira, os sérios problemas do país onde vivem... De um lado do papo, um dos músicos mais importantes de sua geração, do outro, um ex-presidente dos Estados Unidos. É essa a proposta de "Renegados: Born in the USA", diálogos de Bruce Springsteen com Barack Obama que originaram um podcast e agora viram livro.

Com lançamento global marcado para o dia 26 deste mês, "Renegados" será um volume parrudo, pensado para ficar exposto, cheio de fotos, materiais dos acervos pessoais de Bruce e Obama, anotações, manuscritos e conversas que ficaram de fora do podcast. No Brasil, a obra sairá pela Companhia das Letras em tradução de Berilo Vargas e Jorio Dauster.

Publico com exclusividade o manuscrito inédito da canção "American Skin" e um trecho do livro. Nele, Bruce e Obama conversam sobre temas como o recrudescimento de ideias e movimentos nazistas, músicas de protesto, racismo e a violência contra os negros. Confira:

Renegados - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

BRUCE SPRINGSTEEN: O que me chocou recentemente foi descobrir que nossas coordenadas atuais não são tão firmes quanto pensei que eram, sabe?

PRESIDENTE OBAMA: Pensou que já tivéssemos ultrapassado alguns desses marcos?

BRUCE SPRINGSTEEN: A marcha com as camisas polo e as tochas de bambu. Pensei que isso já tinha acabado, sabe?

PRESIDENTE OBAMA: Pois é, você pensou... pensou que não estávamos mais debatendo o nazismo? Pensou que isso tivesse terminado lá atrás, em 1945?

BRUCE SPRINGSTEEN: Essas coisinhas, sabe?

PRESIDENTE OBAMA: Sei, sim.

BRUCE SPRINGSTEEN: Descobrir que isso não circula só nas extremidades, mas que passando pelo coração do país... Isso é um chamado às armas, e nos faz ver claramente quanto trabalho temos pela frente.

PRESIDENTE OBAMA: Sempre digo às pessoas que acredito na trajetória ascendente da humanidade. Mas não creio que seja uma linha reta e constante.

BRUCE SPRINGSTEEN: É muito torta.

PRESIDENTE OBAMA: Segue em zigue-zagues, volta atrás, dá piruetas...

BRUCE SPRINGSTEEN: O arco da história, não é mesmo?

PRESIDENTE OBAMA: O arco do universo moral, que aponta para a justiça, mas não em linha reta. Pode se afastar. E isso vale para toda a nossa história.

Conversamos sobre direitos civis, conversamos sobre rock, sobre música e sobre transformações sociais.

BRUCE SPRINGSTEEN: Certo.

PRESIDENTE OBAMA: Pois bem, vamos dar uma aliviada: melhores músicas de protesto. As melhores três, quatro ou cinco, quantas você puder lembrar...

BRUCE SPRINGSTEEN: "Fight the Power", do Public Enemy.

PRESIDENTE OBAMA: Essa é muito boa.

BRUCE SPRINGSTEEN: Acrescentaria "Anarchy in the UK" ou "God Save the Queen" dos Sex Pistols. São grandes músicas de protesto.

PRESIDENTE OBAMA: "Maggie's Farm" é uma grande música de protesto...

BRUCE SPRINGSTEEN: Maravilhosa!

PRESIDENTE OBAMA: I ain't gonna work on Maggie's farm no more.

BRUCE SPRINGSTEEN: Cantou bem.

PRESIDENTE OBAMA: "A Change Is Gonna Come", de Sam Cooke.

BRUCE SPRINGSTEEN: Linda.

PRESIDENTE OBAMA: Quando ele começa a cantar, é uma coisa.

BRUCE SPRINGSTEEN: Tem muita dor histórica ali. Mas quanta elegância e generosidade na voz dele.

PRESIDENTE OBAMA: E Billie Holiday cantando "Strange Fruit".

BRUCE SPRINGSTEEN: Bum! Vai para o topo da lista.

PRESIDENTE OBAMA: Sabe qual é uma grande música de protesto que as pessoas não entendem como uma música de protesto?

BRUCE SPRINGSTEEN: Qual é?

PRESIDENTE OBAMA: "Respect", cantada pela Aretha Franklin. R-E-S-P-E-C-T, né? É uma música de protesto.

BRUCE SPRINGSTEEN: Uma das melhores.

PRESIDENTE OBAMA: Ela está dizendo para todos os homens: "Toma tento!". Mas não é uma lição de moral.

BRUCE SPRINGSTEEN: Não. Acho que minhas músicas de protesto prediletas são as que captam um determinado espírito, mais do que as que contêm uma diatribe ou um dogma específico.

Manuscrito de 'American Skin' - Springsteen Personal Archives/ NBS - Springsteen Personal Archives/ NBS
Imagem: Springsteen Personal Archives/ NBS

PRESIDENTE OBAMA: Bem, aqui está um bom exemplo. "American Skin" é sobre um evento bastante específico. Um sinal de nossos tempos, apesar de infelizmente a história ter se repetido muitas vezes desde então e muita gente talvez não se lembre exatamente do que aconteceu.

BRUCE SPRINGSTEEN: Bom, Amadou Diallo era um imigrante africano que, por ter sido confundido com outra pessoa, foi parado pela polícia. Ele estava no hall de entrada do prédio onde morava. Fez menção de pegar a carteira e tomou dezenove tiros - 41 tiros foram dados ao todo pelos policiais, depois absolvidos.

PRESIDENTE OBAMA: E, o que é importante em termos de contexto, esses policiais não estavam uniformizados. Por isso, Diallo nem sabia necessariamente por que aqueles quatro indivíduos estavam lhe mandando parar e dando a entender que tinham algum assunto a tratar com ele.

BRUCE SPRINGSTEEN: Depois que ocorreu esse incidente, comecei a pensar: "Pois é, a pele. A pele é o destino", e que privilégio é esquecer que você vive num determinado corpo! Os brancos podem fazer isso. Os negros não podem. É isso que é a questão central dessa música. O resto foi falar sobre o medo que sentimos uns dos outros. Tudo começa com o medo. O medo de uma mãe quando o filho vai a pé para a escola todos os dias. O medo que os próprios policiais carregam.

O ódio vem mais em seguida. De onde vem todo o racismo sistêmico que hoje temos nos Estados Unidos? As pessoas estão amedrontadas. Amedrontadas com o quê? Com a mudança demográfica. Estão com medo de que o país se torne um lugar em que as vozes negras e pardas falem mais alto, fiquem mais influentes, mais poderosas, mais iguais.

PRESIDENTE OBAMA: Perda de status.

BRUCE SPRINGSTEEN: Isso aí, perda de status.

PRESIDENTE OBAMA: Aconteceu alguma reação negativa em relação a você depois de compor essa música?

BRUCE SPRINGSTEEN: Toquei pela primeira vez em Atlanta, que é um lugar ótimo para uma estreia. Aplausos pouco entusiasmados. Mas, quando voltei para Nova York antes de tocarmos no Madison Square Garden, estávamos na primeira página do New York Post... muitos xingamentos vindos de todo lado. Nosso show se tornou uma pequena cause célèbre na cidade.

Os pais de Amadou Diallo foram ao Madison Square Garden, muito simpáticos. Reuni a banda nos bastidores e disse: "Vamos subir só lá e tocar. É para isso que nós existimos. É o nosso negócio. Vamos lá tocar essa música".

E fomos lá, tocamos seis ou sete músicas e começamos essa. Não sei como sabiam do que se tratava, mas rolou uma correria em direção ao palco, com alguns policiais fazendo gestos obscenos em nossa direção. Teve algumas vaias. Depois disso, durante vários anos tivemos muitos problemas com a polícia, que eu sempre achei que fosse mais por não terem ouvido a música de verdade.

Se a pessoa ouvir com atenção, vai compreender que não é uma coisa fundamentalmente polêmica. Não é uma diatribe. Não é uma acusação. É só uma tentativa de avaliar o custo humano desse tipo de assassinatos que se repetem dia após dia. O custo humano. A música tem vinte anos. É o que estamos pagando em sangue por não ter resolvido essas questões. Por não termos nos resolvido uns com os outros. A coisa simplesmente continua.

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