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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Na nossa distopia, '1984' como embalagem para celular é alívio cômico

George Orwell - Arquivo
George Orwell Imagem: Arquivo

Colunista do UOL

02/06/2021 08h58

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Milhares de pessoas tomaram ruas de cidades em todo o país para protestar. Pediam por vacinas e comida. Também pelo impeachment de Jair Bolsonaro. Em São Paulo, a marcha ocupou diversos quarteirões da avenida Paulista. Ainda assim, parte dos jornais mais importantes do país preferiu ignorar ou diminuir as manifestações. Numa mistura de delírio e ousadia, teve veículo apontando que a prorrogação do auxílio emergencial era a principal pauta reivindicada.

No Ministério do Meio Ambiente, um ministro que defende a devastação e trabalha firme para tal. Todo dia surgem vídeos e denúncias da tal boiada passando. Se funcionários públicos ligados a órgãos de proteção ambiental tentam fazer algo para, vejam só, defender florestas ou rios, acabam punidos.

Na Secretaria da Cultura, um secretário que vai para a Itália acompanhar a inauguração de uma exposição em homenagem à arquiteta Lina Bo Bardi, mas sequer tem o trabalho de pesquisar no Google quem foi e qual é a importância da figura. Em pouco tempo, também já ocuparam o cargo uma entusiasta abobalhada do peido do palhaço e um sujeito que emulou Goebbels. Alusões diretas ao nazismo e ao fascismo, aliás, viraram corriqueiras.

Ciência sufocada. Corte de verbas para o desenvolvimento de vacinas e cloroquina até para as emas (estas, mais razoáveis, recusaram o engodo). Menor orçamento para pesquisas das últimas duas décadas. Articulação aberta para que a Universidade Federal do Rio de Janeiro feche as portas.

A polícia parece ter virado braço armado do bolsonarismo. A milícia expande os negócios. Os militares estão satisfeitos. A promessa de fim das mamatas era tão real quanto as mamadeiras de piroca. É fardado vendo sua renda dobrar. É gasto crescendo 17% além do previsto. É verde-oliva ocupando cargo para tudo que é lado do governo. À mesa dos quartéis, a picanha, o bacalhau, o uísque e até a cerveja que andam bem distantes das casas de milhões de brasileiros. Enquanto isso, general da ativa que passou pelo Ministério da Saúde e deixou a pasta com milhares de mortos nas costas sobe em palanque político e nada acontece. Jair Bolsonaro e Forças Armadas são indissociáveis, esta é a verdade.

E a Copa América ainda cai nos braços desta joça afundada pela pandemia, pelo descaso oficial e pelas mentiras e alucinações que corroem cérebros que funcionavam relativamente bem até alguns anos atrás.

Daí a ex-BBB Flay arruma um exemplar de "1984", destroça as páginas, faz um rombo no miolo do livro e usa o calhamaço salvaguardado pelas capas intactas como embalagem para presentear a irmã com um celular. A imagem, que causou indignação e gerou muitas piadas por aí, segue repassando pela minha cabeça. Não sei se deveria.

Convenhamos: uma ex-participante do "Big Brother" usar uma edição de "1984", inspiração para o programa, como embrulho para um celular é sim uma cena bastante simbólica para os nossos dias. Provavelmente deixaria Orwell encafifado. Olhando para nossa distopia cotidiana, no entanto, há situações orwellianas muito mais sérias para nos preocuparmos. Destroçar um exemplar do clássico para usá-lo como embalagem de presente soa até como um irônico alívio cômico.

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