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ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

O pênis ereto que jorra sangue

"Unos Cuantos Piquetitos", de Frida Kahlo - Reprodução
"Unos Cuantos Piquetitos", de Frida Kahlo Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

24/02/2021 09h47

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"O inimigo, maluco, dizia o demente barbudo: o inimigo está em toda parte. Tinham-no pintado com um tijolo ou algum outro pigmento avermelhado, e ele possuía uma cabeça enorme com cornos e focinho de porco e olhos redondos e vazios, cercados por raios tortos, como sóis pintados por uma criança perturbada, e patas atarracadas de bode e um par de tetas que pendiam até uma grande pica ereta que jorrava o que aparentava ser sangue seco, sangue de verdade"

Vencedor do Prêmio Pen México de Excelência Jornalística e Literária de 2018, finalista do pomposo International Booker Prize de 2020 e bastante incensado pela crítica latino-americana, "Temporada de Furacões" acaba de dar as caras por aqui. Traduzido por Antonio Xerxenesky, o romance da mexicana Fernanda Melchor saiu pela Mundaréu e marcou a estreia do promissor Tortilla, clube de livros dedicado à literatura hispânica.

Inspirada por relatos reais, Fernanda apresenta um México extremamente violento, onde o Estado, quando presente, confunde-se com o poder paralelo. A história se passa em La Matosa, canto fictício situado próximo à costa caribenha. Rincão pobre, de pouco trabalho, pouca opção do que fazer além de fofocar, comer um lanche com carne de cachorro, beber, transar e arruinar vidas. Por lá, as pessoas, especialmente as mulheres, tentam seguir vivas após os muitos massacres de cada dia. "Temporada de Furacões" é uma porrada.

Enquanto brincam perto do canal de irrigação, dois garotos encontram um cadáver com o pescoço cortado e já petiscado pelos urubus. É o corpo da Bruxa, figura bem conhecida na região, "um senhor de quarenta ou quarenta e cinco anos de idade", que vestia "roupas pretas de mulher" e tinha "unhas bem compridas e pintadas também de preto, espantosas, e embora tivesse algo como um véu que lhe tapava o rosto bastava ouvir a voz e ver as mãos que você se dava conta de que se tratava de um homossexual".

Personagem-chave da obra, espécie de Geni, a Bruxa é ao mesmo tempo indispensável e escorraçada na comunidade. Como curandeira, domina o preparo de substâncias abortivas que dão fim às barrigas indesejáveis. No sexo, raros são os que assumem lhe querer. Daí que, após o assassinato, alguém vocifera "A Bruxa fez por merecer: por ser veado, por ser feio, por ser cuzão e por ser podre".

Temporada de Furacões - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Quando uma enfermeira diz que "essas safadas não sabem nem limpar a bunda e já querem sair trepando, vou contar para o médico para que faça a curetagem sem anestesia, para ver se assim aprende", transparece não apenas o policiamento e o desejo de domínio sobre corpos alheios, mas também indica a iniciação sexual precoce e precária, tanto consequência quanto causa de uma série de mazelas. O estuprador dentro de casa, a pedofilia, as deturpações provocadas pela indústria pornográfica e a zoofilia são alguns dos pontos que a obra toca.

Os homens do romance entendem que qualquer esboço de carinho, afeto ou compaixão precisa logo ser suprimido e transformado em violência, sinal de uma suposta virilidade. São machões que, com medo do que seus pares possam pensar, reprimem e ocultam desejos enquanto incentivam e praticam a misoginia, a homofobia e a transfobia. Furacões são fenômenos naturais que sazonalmente devastam regiões do México. No romance, porém, não aparecem como ventos fortíssimos que sopram e carregam consigo boa parte do que encontram, mas como seres humanos que agem com gigantesca força destruidora.

"Temporada de Furacões" exige do leitor certa dedicação para que entenda a proposta da autora, pegue o ritmo e engrene na leitura. O fluxo narrativo que demanda atenção também impressiona. A obra é composta por enormes sequência de vozes e pensamentos que dominam cada um dos oito capítulos. São jorros de cenas, descrições, digressões e um elogiável talento para alternar o foco entre os personagens. A história se apresenta com idas e vindas no tempo, antecipações, quase repetições, tudo com um certo tom de desabafo, revolta e urgência.

Pelo trabalho com a linguagem e pela proximidade entre as desamparadas La Matosa e Comala, a comparação com "Pedro Páramo", do também mexicano Juan Rulfo, obra fundamental da literatura latino-americana, é inevitável. Comac McCarthy e o seu duro e cruel "Meridiano de Sangue" também ecoa no romance de Fernanda.

La Matosa é um lugar onde a brutalidade impera e massacra. Onde o bicho homem trucida e é trucidado por conta de uma cultura estúpida, machista, que se arrasta por séculos e agora, confrontada, mostra os dentes, rosna e ataca para tentar sobreviver. Avança com ódio, com gritos, com golpes, com armas. No parágrafo destacado no início desta resenha há uma criatura monstruosa com um pênis ereto que jorra sangue. A imagem é uma ótima metáfora não apenas para esse trabalho de Fernanda Melchor. No romance, entretanto, há uma luzinha distante que indica o caminho para a saída do buraco. Luzinha que anda difícil de ser encontrada fora da literatura.

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