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Diário da prisão: Preta Ferreira mostra o Brasil que nunca saiu da ditadura

Preta Ferreira - Divulgação
Preta Ferreira Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

03/02/2021 09h48

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"Essa história começa em 24 de junho de 2019, quando fui presa sem ter cometido crime algum. Num desdobramento injusto da investigação sobre o desabamento do Wilton Paes de Almeida, prédio no largo do Paissandu que então era ocupado pelo Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM) - do qual não fiz parte -, e a partir de uma carta anônima, fake news, enviada via correio ao Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), o Ministério Público me denunciou, junto com mais dezoito pessoas de variados movimentos por moradia".

Dessa forma que Janice Ferreira Silva foi parar na prisão. Terceira de oito filhos de sua mãe, Carmen, ela saiu da Bahia e chegou em São Paulo sonhando com um baile de debutante. "Mal sabia eu que meu baile era outro: era o baile da sobrevivência". Entre projeções e realidade, também pensava ter nascido para ser empregada doméstica, como se seu futuro já estivesse traçado por forças nem tão ocultas assim. Na capital paulista, encontrou outros caminhos. Seu primeiro endereço foi na hoje chamada Ocupação 9 de Julho. A luta em movimentos sociais que batalham por moradia aos sem-teto se construiu junto com a carreira artística. Janice é cantora, compositora, atriz e produtora.

Sem julgamento, Janice, mais conhecida como Preta Ferreira, ficou 108 dias presa. Depois, ainda se viu num emaranhado jurídico que a impediu de sair de casa em certos períodos do dia ou da semana. A ativista acaba de relatar o que viveu em "Minha Carne - Diário de uma Prisão", livo que sai pela Boitempo. "Aqui as coisas funcionam desta forma: primeiro você vai preso, paga pelo crime, e só depois eles veem se você é inocente ou não", escreve em certo momento da obra.

No volume, um dos méritos de Preta é nos lembrar de que a ditadura jamais deixou de existir para diversos setores e camadas da sociedade. "Pessoas ainda morrem na mão da polícia, pessoas inocentes são presas, presos políticos que não concordam com toda essa ditadura e descaso de 1964 a 2019. Nada mudou, só o ano", crava.

Minha Carne - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

É um reflexo da nossa redemocratização capenga. Para milhões de brasileiros, o que sempre vigorou foi o estado de exceção. Num país em que leis precisam "pegar" para que sejam cumpridas, a Constituição de 1988 só fez algum sucesso nas bolhas mais ricas das cidades. Na prática, Pinheiros e Brasilândia nunca viveram sob o mesmo regime. Daí que faz todo o sentido Preta apontar que "lutar por direitos constitucionais é fazer a revolução".

Ao longo da leitura de "Minha Carne", com frequência lembramos das prisões mais descabidas que vemos no noticiário e pensamos em quantos outros estão encarcerados sabe-se lá por quê. Num país em que Marielle Franco (PSOL) é assassinada num crime ainda não elucidado, a deputada federal Talíria Petrone (PSOL) é ameaçada por milícias e vereadoras e covereadoras trans (também do PSOL) são atacadas em São Paulo, difícil não cogitar que exista mesmo um aparato para frear determinadas lutas progressistas.

Em "Minha Carne", a militante, por meio dos registros diários, também apresenta ao leitor um tanto da rotina na penitenciária feminina. Em diversos momentos, sublinha que muitas das que estão ali, atrás das celas, tiveram suas vidas destruídas por homens. "A maioria das mulheres está aqui quase pelos mesmos motivos. E foram os homens que destruíram a vida dessas mulheres. Maridos, amantes, ex-namorados, namorados. Tem até ex que acusou e depois quis reatar o relacionamento. A dor de corno foi tão grande que ele acusou a enfermeira, sua ex, de tentativa de assassinato junto com seu atual namorado".

Há também pormenores do dia a dia numa "jaula com uma lavagem, que eles chamam de comida". São registros, reflexões, convicções, aprendizados, lutas e histórias de colegas de cárcere que nos revelam um mundo cheio de pessoas amarguradas, onde tragédias, sacanagens, arbitrariedades, violências e descaso (e alguma camaradagem também) se acumulam debaixo de uma montanha de corrupção.

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