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Carta (com dicas de leitura) ao leitor desconhecido

Leitor - Reprodução
Leitor Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

18/11/2020 09h58

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Leitor desconhecido, meu amigo, como está você?

Por aqui, sigo mais enfurnado do que gostaria. Se falta o futebol (e quanta falta faz jogar bola!), as leituras vão bem. Lembra que há alguns meses te escrevi para contar da oscilação entre livros e prostrações? Agora, até pelos empurrões do trabalho, não mais. Mando outra carta para compartilhar boas sugestões, camarada.

Ao Pó - Reprodução - Reprodução
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Começo com gente nova. Morgana Kretzmann, gaúcha que acaba de estrear no romance com "Ao Pó" - saiu pela Patuá. Atriz, roteirista, produtora cultural… a moça já era metida com o meio artístico, o que ajuda a explicar os conflitos da protagonista com um dramaturgo tão famoso quanto babaca. Esse é só um dos abusos retratados no romance. A violência sexual, os estupradores e pedófilos dentro da família, o silêncio cúmplice, a covardia e a dificuldade em bater de frente com certas questões marcam a história de uma menina violentada pelo tio.

Quando cresce um pouco, ela, chamada Sofia, vai para o Rio de Janeiro tentar se acertar ou encontrar algum caminho para a vida, mas sua irmã mais nova segue em Tenente Portela, cidadezinha do Rio Grande do Sul. Daí você já pode imaginar quais são as principais tragédias que movem uma história potente que se desdobra ao longo de quase uma década. Ainda bem que a Morgana acertou a mão no ritmo da narrativa, que marca mesmo pelos episódios de diferentes tipos de assédio e violência contra as mulheres.

Trago comido as dores - Reprodução - Reprodução
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Também recomendo, amigo, o Roberto Menezes, autor que merece atenção. Há alguns anos escrevi sobre o "Julho É um Bom Mês Pra Morrer", romance que saiu em 2016 pela Patuá e me agradou bastante. Agora li a novela "Trago Comigo as Dores de Todos os Homens", lançada no ano passado pela Escaleras. Livreto ligeiro, de poucas páginas, daqueles que se lê entre uma cerveja e outra. Numa época em que tanta gente melindra com spoiler, não contarei muito sobre o enredo. Direi apenas que lemos registros de um poeta cheio de ressentimentos e moral pra lá de questionável. Sim, também já vi muito disso por aí, mas eventuais pedradas na imprensa e no meio literário levam a risadas e reflexões. A dose de sacanagem e o estilo do Roberto rendem pontos pra obra.

Nesta desconjuntada série de dicas, camarada, agora puxo uma que estava há meses aqui na minha mesa, esperando o seu momento: "O Que Ela Sussurra", da Noemi Jaffe, uma das grandes leituras do ano. É uma linda história de amor, ainda que uma história de amor nada óbvia, nada melosa. É a paixão de Nadejda pelo poeta Óssip Maldestam e, talvez acima de tudo, de Nadejda pela poesia de Óssip Maldestam.

O que ela sussurra - Reprodução - Reprodução
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Depois da morte do cara, Nadejda passou anos, décadas, carregando em sua memória os poemas de Óssip, um dos muitos escritores censurados, perseguidos, agredidos, encarcerados, trucidados pelo regime soviético. Para não esquecer dos versos, essa heroína da literatura sussurrava as palavras de Maldestam. É um romance publicado pela Companhia das Letras e alicerçado numa história real. Há muito do horror stalinista, mas também há muito da beleza da resistência. Além de trechos marcantes para tudo que é lado, como uma cena em que mulheres começam a sussurrar em coro dentro de um ônibus, ou como esta passagem:

"Nunca mais tivemos um Stálin no poder e já faz algum tempo que ele felizmente morreu. Quando eu soube da sua morte, não consegui ficar tão feliz quanto imaginava. Senti alívio, suspirei como se um raio tivesse caído a um metro de distância, aquele suspiro de foi por pouco, cansado e desesperado. E se tivesse caído em mim? Era como se décadas de urgência e peso e, com elas, toda a sua inutilidade fossem subitamente retiradas de cima dos ombros. Isso não é motivo de alegria, mas de frustração pelo fato de as coisas não terem sido diferentes. Era como me dar conta de uma vida acima do que eu podia suportar e, mesmo assim, tinha suportado".

Eu conversei com a Noemi, também autora de "O Que os Cegos Estão Sonhando" e "Írisz: As Orquídeas", para o jornal Cândido, meu amigo, se quiser ler o papo…

País da Canela - Reprodução - Reprodução
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Agora, por falar em ficção histórica, uma das boas é "O País da Canela", do colombiano William Ospina. A tradução para o português, feita pelo Eric Nepomuceno, saiu por aqui em 2017 pela Mundaréu, mas pouco foi dito a respeito. Um pecado, temos deixado passar muita coisa boa. O livro é uma baita aventura pela Amazônia do século 16, com os invasores europeus metendo as caras - e passando por perrengues gigantescos - naquelas bandas hoje divididas entre o Peru, a Colômbia e o Brasil. A travessia do rio Amazonas, a grande jornada épica da obra, é toda marcada por mortes, improvisos, encontros, trocas e conflitos com populações da floresta, além dos espantos provocados por uma natureza jamais vista pelos espanhóis e suas crias.

Também há um braço da narrativa sobre a diferença entre quem de fato vive e se coloca em contato com o diferente e os sabichões que buscam compreender o mundo apenas com a bunda na cadeira, tentando reduzir tudo o que há de complexo às suas ideias preconcebidas. É daqueles livros que dão cor e vida a um período muitas vezes reproduzido de forma chocha demais, fria demais. Boas histórias nunca merecem ser tratadas de maneira frígida, meu amigo, e o Ospina parece saber disso. Esse "O País da Canela" faz parte de uma trilogia do cara sobre o povo de Cervantes metendo o bedelho e barbarizando por estas bandas. Quem sabe um dia os outros dois livros da série pintam por aqui.

Segredos - Reprodução - Reprodução
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E temos o novo do Domenico Starnone, camarada. "Segredos", romance sobre intrigas intelectuais, vaidade, insegurança e, claro, pelo menos um grande segredo capaz de deixar seu autor encurralado ao longo de toda a vida. Como nos outros livros desse italiano que sai no Brasil pela Todavia traduzido pelo Maurício Santana Dias, temos uma história cheia de relações truncadas, corroídas e muitas vezes sustentadas por bases mais fragilizadas do que o sistema defensivo do São Paulo.

O Starnone sabe como poucos concentrar em algumas dezenas de páginas as áreas cinzentas das relações humanas. Se gostei do livro? Gostei sim, mas ainda carrego o impacto causado por "Laços". Por aqui, talvez o autor esteja condenado a ser sempre confrontado com a estupenda impressão que deixou em nosso primeiro encontro. Injusto, talvez. Sei bem. Mas paciência. Faz parte da vida de qualquer leitor. E de qualquer escritor, imagino.

Por enquanto é isso, oculto de tantas faces.

Fora os livros, tanto o futebol quanto a política começam a dar alguns indícios animadores. Dias melhores estão por vir, só espero que não demorem.

Fique bem e também me mande suas sugestões.

Grande abraço.

RC

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