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Minhas viagens (pelo videogame) com Heródoto, o "Pai da História"

Heródoto em Assassin"s Creed - Reprodução
Heródoto em Assassin's Creed Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

30/09/2020 09h51

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Por volta do século 5 Antes da Era Comum, o grego Heródoto perambulou por parte considerável do mundo conhecido pelos seus pares. Ao explorar diferentes bordas do Mediterrâneo, viajou pelo Egito, Líbia, Macedônia... Num período de constantes guerras, aproveitou as andanças para registrar passagens pregressas, conflitos então atuais e também colher particularidades de cada terra e povo. Condensadas, suas anotações com pegada de diário de viagem se tornaram um marco para a historiografia, tanto que passou a ser tratado como o "Pai da História". Um exemplo das observações feitas por Heródoto:

"Esses Trácios não adoram senão Marte, Baco e Diana; mas os reis prestam particular culto a Mercúrio, do qual se julgam descendentes, e juram unicamente por esse deus. Os funerais das pessoas ricas são realizados, entre eles, da seguinte maneira: o morto fica exposto à vista dos parentes e amigos durante três dias, e, depois de lhe haverem sacrificado toda sorte de animais, realizam um festim, sempre iniciado por copioso pranto. Dão-lhe, em seguida, sepultura tal como se encontra, ou depois de o haverem queimado. Erguem um cômoro sobre a cova e celebram jogos de toda espécie, com distribuição de valiosos prêmios aos vencedores dos combates singulares".

Pesco a citação do segundo volume da edição de "História" publicada pela Nova Fronteira. A tradução é de J. Brito Broca; merece elogio a apresentação do historiador Vítor de Azevedo, um estudo crítico com boa profundidade e contextualização. Mas não trago Heródoto para ser mais um a elogiar o clássico nesses últimos 2400 e tantos anos. Lembro do camarada e de sua obra porque estive recentemente com ele num barco, dando uns rolês por aqueles cantos que tão bem conheceu.

Não é de hoje que me divirto com os encontros proporcionados pela série Assassin's Creed. Já escrevi aqui sobre os papos com Karl Marx e o paralelo que há entre Assassin's Creed Syndicate, ambientado na Londres do século 19, e as obras de Charles Dickens, este também um personagem do game.

Na minha mão, jogos caminham bem devagar e estão sempre atrasados em relação aos lançamentos (principalmente porque espero o preço cair até caber no meu bolso). É por isso que só agora escrevo sobre a minha experiência com Assassin's Creed Odyssey, publicado em 2018.

Ecoando "Odisseia", de Homero, o jogador é levado para uma aventura pelos mares da Grécia durante os anos 400 Antes da Era Comum. A Guerra do Peloponeso, travada entre Atenas e Esparta, está no pano de fundo de uma história sobre fé, lealdade e desencontros familiares, seitas misteriosas e as enfadonhas viagens no tempo que marcam os episódios da franquia.

Aproveitando a cornetada, o game também poderia ser consideravelmente menor; a prática (ou vício mercadológico) de criar jogos com trocentas horas de duração anda prejudicando boas narrativas e experiências. O crítico João Varella, autor do ótimo "Videogame, A Evolução da Arte" (Lote 42), vem batendo nessa tecla há algum tempo.

Assassins - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Para quem gosta de história, no entanto, Assassin's Creed é indispensável. É muito instigante perambular pelo mundo de outrora reconstruído com minúcia, emular situações que lemos nos livros e visitar monumentos recém-construídos que ainda desejamos conhecer em nossos dias. Não bastassem desafios olímpicos, batalhas épicas e a experiência de ver o horizonte do ponto mais alto do Parthenon, há também os encontros que tanto me agradam. Em Odyssey, dá para passar raiva com a retórica de Sócrates, surpreender-se com a arrogância de Hipócrates, preocupar-se com Péricles e primeiro achar o cara folgado demais, mas depois rir um tanto com as mutretas de Alcibíades, luxurioso político ateniense.

Como vocês já presumiram, por aqui o santo bateu mesmo com Heródoto. O autor acompanha o jogador durante boa parte da jornada, servindo de conselheiro em momentos importantes e de contador de causos e passagens de outrora durante longas viagens de navio. Nesse sentido, desempenha um papel semelhante ao sábio deus Mimir, da mitologia nórdica, que em God of War 4 se apresenta como uma cabeça tagarela que conta histórias a Kratos e seu filho durante as navegações.

A singular experiência de descobrir um mundo tendo Heródoto como companheiro de jornada também remete a Ryszard Kapuscinski, jornalista dos que mais admiro, autor de livros memoráveis, como "Ébano - Minha Vida na África", "A Guerra do Futebol" e "O Imperador". Em seus primeiros anos de correspondente internacional, carreira à qual deve sua fama, Kapu foi enviado para países como Índia, China e Congo. Em sua mala, levou "História", que lhe serviu de referência intelectual frente ao desconhecido e ao misterioso. O diálogo entre as aventuras do polonês e os registros do grego está em "Minhas Viagens com Heródoto - Entre a História e o Jornalismo", mais um que recomendo. Saiu pela Companhia das Letras, como os outros do escritor.

São viagens que valem a pena vivermos. Se o mundo real anda hostil aos viajantes, que as façamos com livros ou controles em mãos.

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