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Complexa e singular: Leonardo Padura esmiúça relação com Cuba

Leonardo Padura - Divulgação
Leonardo Padura Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

09/09/2020 11h18

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Há dias em que o cubano Leonardo Padura gostaria de ser Paul Auster. Apesar de admirar o trabalho do norte-americano e reverenciar algumas de suas obras, o escritor gostaria mesmo de se passar pelo colega de letras para poder conversar mais sobre literatura. "Eu desejaria ser Paul Auster, sobretudo, para que, quando fosse entrevistado, os jornalistas me perguntassem o que os jornalistas em geral perguntam a escritores como Paul Auster e quase nunca perguntam a mim - e não pela distância sideral que me separa de Paul Auster. De fato, é muito estranho interrogarem alguém como Paul Auster sobre os possíveis rumos da economia dos Estados Unidos ou quererem saber por que ele ficou em seu país durante os anos horríveis do governo de Bush Jr.".

O desejo aparece num dos ensaios de "Água Por Todos os Lados", que reúne textos de não ficção de Padura escritos ao longo deste século. O volume acaba de sair no Brasil pela Boitempo com tradução de Monica Stahel. É mesmo raro ver alguma entrevista com o autor de "O Homem que Amava os Cachorros", romance com mais de 50 mil exemplares vendidos por aqui, que não seja dominada por questões sociais, econômicas, ideológicas e históricas relacionadas a Cuba - fico até com receio de rever as perguntas que já fiz para ele. Esse incômodo ajuda a mover o escritor em alguns dos momentos mais interessantes do novo livro.

"O que Cuba tem ou não tem para ser tão importante perguntar a um escritor os motivos pelos quais vive em seu país? [...] É claro que posso inferir que a conjuntura política e a complexa singularidade da existência cotidiana ou a soma de peculiaridades históricas e presentes que envolvem a vida cubana podem causar tal curiosidade jornalística. Mas, ao mesmo tempo, esse acúmulo de particularidades e originalidades, e até de dificuldades e carências, também pode funcionar como um ímã capaz de atrair o escritor para sua geografia, sua cultura, sua circunstância, que pode ser altamente dramática e, às vezes, definitivamente sufocante".

Padura nos apresenta os problemas e as virtudes de sua Cuba com olhar crítico e ao mesmo tempo afetuoso. Escreve sobre as esperanças e decepções das últimas décadas, mostra as contradições financeiras, aponta as características de viver num lugar cercado de água por todos os lados (como indica no título do livro) e reflete muito sobre a história cubana e suas mudanças culturais. Nesse aspecto, aliás, soa levemente familiar a passagem na qual o escritor revela a preocupação com a molecada que desfila pelas ruas com camisas de Cristiano Ronaldo e Messi. Irá o futebol desbancar o beisebol, esporte preferido do país no último século e potente elo entre Padura e seu pai? E no Brasil, os times europeus desbancarão nossos clubes?

Água - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

"Água Por Todos os Lados" oferece ao leitor a chance de conhecer Cuba além dos clichês propagados por detratores e admiradores. Na visão do próprio autor, trata-se de um país muitas vezes inapreensível. "A vida cotidiana dos cubanos é tão complexa em seus emaranhados, é tão cheia de singularidades e incongruências, que poucas vezes a imprensa internacional que tenta refleti-la consegue roçar suas interioridades dramáticas, entre outras razões porque nem sequer para nós cubanos que vivemos dia a dia essa realidade cotidiana é factível encontrar certas respostas".

A Cuba de Padura se mostra a partir de Havana, cidade que também serve de ponte para as outras camadas do livro: a análise da literatura (inclusive a feita sobre a capital por conterrâneos como Pedro Juán Gutiérrez e Abilio Estévez) e as reflexões sobre seu trabalho como escritor. "Uma cidade são também seus sons, cheiros e cores: Jerusalém é da cor do deserto e cheira a especiarias. Amós Oz sabe. O som de Nova York é a sirene de uma ambulância, de um carro de bombeiros, de uma patrulha policial. John dos Passos o padeceu, Paul Auster o padece. O bairro espanhol de Nápoles cheira a café fresco. Roberto Saviano o apreciou. Minha Havana soa a música e a carros velhos, cheira a gás e a mar, e sua cor é o azul".

Em certas passagens de "Água Por Todos os Lados", Padura levanta possibilidade sobre o que leva alguém a escrever romances, passa pela construção de personagens como o mítico Mario Conde, seu grande protagonista, e conta bastidores de trabalhos como "O Homem que Amava os Cachorros" e "Hereges". Em outros momentos, olha com atenção para Alejo Carpentier e José Lezama Lima, que vê como os escritores cubanos mais importantes do século 20. E se é ótimo se aprofundar no que Padura tem a dizer sobre o país onde nasceu e onde vive, também é muito bom acompanhar os mergulhos do autor em questões da literatura e do fazer literário.

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