Guerras culturais influenciam cinema e TV há um século, aponta pesquisador

Ler resumo da notícia
Você está em meio a uma guerra. Não é de tiros e bombas, mas de corações e mentes —uma disputa que vai de Hollywood a Brasília. São as chamadas guerras culturais, travadas no jornalismo, nas redes sociais, no cinema, na TV, no streaming, nos quadrinhos e muito mais. Em outras palavras: moldam tudo o que consumimos. E não se engane: elas envolvem Lula, Bolsonaro e Trump —e você também. Nesse campo de batalha, todos somos alvo, mas também podemos ser arma e soldado.
O tema é explorado no recém-lançado livro de Celbi Pegoraro, jornalista e pesquisador, "Guerras Culturais na Mídia: Jornalismo, Quadrinhos, Cinema e a Política nos Campos de Batalha", publicado pela Editora Petrópolis, baseado em seu trabalho de pós-doutorado.
"Enfrentamos isso há pelo menos 100 anos, no mínimo", revela o autor, que é doutor em ciências da comunicação. Ele afirma que o movimento não é uma disputa entre dois extremos antagônicos —como muitos pensam—, como progressistas e conservadores, ou esquerda e direita. "Na verdade, são vários grupos, que se atrelam. Podem concordar em alguns temas, discordar em outros. Muitas vezes, eles se aglomeram em determinadas pautas".
O que existe, contextualiza Pegoraro, são movimentos de pêndulos na cultura. O debate oscila: ora mais progressista, ora conservador —ou até reacionário. "[Atualmente] Estamos caminhando agora para um movimento mais conservador, até por conta do governo Donald Trump, que está sendo mais radical em suas políticas econômicas e em outras medidas para pressionar empresas, incluindo a indústria do entretenimento.
Hoje, estamos saindo de um pêndulo que era mais progressista. Celbi Pegoraro, autor, jornalista e pesquisador
Obviamente, cada país tem a sua versão da batalha —com disputas regionais se relacionando com os movimentos globais. "Não é homogêneo em todo o mundo", destaca o pesquisador. Ele conta que no Reino Unido, por exemplo, pesa menos as questões religiosas, e mais preocupações econômicas e migratórias. Contudo, tanto lá quanto aqui no Brasil e nos Estados Unidos, tem importância o desarranjo social e apreensão com os efeitos da globalização.
De 'A Feiticeira' aos dias atuais
O contexto temporal também tem a sua relevância. Em seu livro, Pegoraro menciona a série "A Feiticeira", exibida originalmente entre 1964 e 1972, e reprisada desde então.
Na época, a série quebrou paradigmas ao mostrar —ainda que não tenha sido a primeira— um casal dormindo na mesma cama, além de colocar a protagonista Samantha (Elizabeth Montgomery) em situações que não eram bem vistas por uma mulher casada. Além disso, o próprio subtexto da série —uma mulher que vai contra a sua natureza, causando os principais conflitos dos episódios— era um pouco subversivo para seu tempo. Aos olhos de hoje, no entanto, parece ter um tom conservador, sobre uma estrutura de família e sociedade que não existem mais.

"Ao analisar produtos culturais, percebemos que algumas produções que consideramos politicamente corretas hoje, provavelmente serão vistas como problemáticas em dez anos", explica o pesquisador "Paralelamente, outras contêm elementos inovadores e revolucionários. Cito esses exemplos para discutir o que chamo de 'crise do cânone' e 'progressofobia'"
A "progressofobia", afirma o autor, "ocorre quando negligenciamos os avanços e as críticas sociais presentes em determinadas produções culturais". Para ele, isso fica claro em animações da Disney: em sua época, eram inovadores tanto em formato quanto em temas debatidos. Contudo, hoje são vistos como ultrapassados, datados e machistas. "A perpetuação dessas obras em diferentes mídias pode obscurecer o contexto original", observa Pegoraro.
Um bom exemplo na cultura brasileira é a televisão dos anos 1980 e, sobretudo, dos 1990. Hoje, setores progressistas consideram problemático o conteúdo da época, enquanto conservadores, saudosistas, reclamam de uma "ditadura do politicamente correto" na mídia atual. A verdade é que a TV daquela época refletia uma busca quase desenfreada por liberdade, após décadas de ditadura que impôs censura prévia no Brasil.
Da mesma forma, o programa 'Clube do Mickey', de 1978, apresentava maior diversidade do que a versão dos anos 90, que lançou artistas como Justin Timberlake. Na década de 70, havia personagens negros, latinos e asiáticos, refletindo as pressões do movimento social dos anos 60. Pegoraro
O mesmo serve para o outro lado do prisma da guerra. "É importante lembrar que a produção cultural LGBT, por exemplo, não começou há cinco anos. Existe um histórico de décadas de avanços graduais, mas constantes", afirma o autor —que ressalta o mesmo da luta feminista e da causa negra, com programas como "The Mary Tyler Moore Show" e "The Cosby Show".
Polarização
Um tema que permeia a pesquisa é o da polarização moral —inspirada na obra do linguista e cientista cognitivo George Lakoff, que emprega as metáforas do "pai compreensivo" e do "pai severo" para ilustrar diferentes visões de mundo.
Celbi explica que, para o norte-americano, existem algumas hipocrisias nas disputas temáticas entre grupos políticos. Por exemplo, muitos conservadores são contra o aborto usando como argumento a defesa da vida, mas, ao mesmo tempo, defendem a pena de morte. Já os progressistas adotam a posição inversa: defendem o direito ao aborto, mas se opõem à pena capital. Segundo Pegoraro, há vários casos semelhantes que ilustram essas contradições. "Para entender a dinâmica dessas divergências, é crucial examinar como os diferentes grupos se comunicam e como a polarização se manifesta", complementa.
O jornalista também ressalta, com base em estudos como os de Liliana Mason, que a polarização social não ocorre de forma linear, mas segue um padrão em "U". "Os extremos ideológicos, com maior visibilidade e influência, são os que mais se destacam na esfera pública. Essa proeminência pode gerar a falsa impressão de que a sociedade em geral compartilha dessas posições extremas".
Contudo, dados históricos indicam que as opiniões sobre temas polêmicos nem sempre sofrem mudanças tão drásticas. Celbi ainda destaca que, por muito tempo, as vozes mais importantes da comunicação eram mais do lado progressista —e hoje, com o crescimento das redes sociais e da mídia alternativa, a direita conquistou mais espaço. "A ausência prolongada de uma representação mais expressiva de vozes conservadoras nos espaços de opinião torna mais difícil compreender suas narrativas e estratégias".

Outra polarização é a afetiva. "Alguns fenômenos do ponto de vista afetivo podem parecer estranhos, mas para certos grupos fazem sentido", afirma o pesquisador.
Um exemplo atual é o uso da bandeira dos EUA no movimento do dia do 7 de setembro, no Brasil. Quer dizer, o que tem a ver? Mas aquilo ali é uma sensação de afetividade, de achar que os Estados Unidos estão funcionando como um aliado, que tem tudo a ver com a defesa da soberania brasileira. É nesse aspecto que funciona a polarização afetiva, é um movimento bem curioso. Celbi Pegoraro
Hoje, as grandes empresas de tecnologia assumiram o papel da mídia tradicional —e tudo isso acaba exacerbado pela tecnologia, conta Pegoraro. Nunca estivemos tão conectados, com rápidos avanços da ciência —enquanto outros debates não acompanham o mesmo ritmo. "É um impasse: a tecnologia traz coisas muito boas, mas ela também traz certos problemas. Você acaba criando esses cismas nos diferentes grupos sociais."
Como vemos, a guerra cultural não é daquelas que se encerra com protestos nas ruas, mas todos lutamos em suas trincheiras —mesmo que seja apenas com uma curtida ou compartilhando um post. A reflexão que fica é: quem está realmente vencendo a batalha pela sua atenção — e pelos seus pensamentos?
Siga Renan Martins Frade no X (ex-Twitter), Instagram, TikTok e LinkedIn, ou faça parte do grupo do WhatsApp.





























Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.