Netflix testa canais ao vivo e flerta com modelo das operadoras de TV paga

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Agora é oficial: a Netflix está virando TV a cabo. Em dois movimentos nas últimas semanas, a gigante do streaming anunciou que agregará sinais lineares "ao vivo" de outros parceiros, modificando profundamente a forma como a empresa atua. Tudo para aumentar a retenção e tempo médio do espectador, além de abrir mais portas para a publicidade.
O primeiro anúncio —a que pouca gente aqui no Brasil deu atenção— foi em meados de junho. A companhia norte-americana divulgou um acordo com a TF1, famoso conglomerado de mídia francês que é dono do canal de TV aberta mais popular no país. A partir de meados de 2026, as emissoras do grupo e as produções da plataforma sob demanda, a TF1+, serão integradas ao catálogo da Netflix na França.
Seria como ter os sinais da TV Globo, da Globonews e do SporTV, além das séries do Globoplay, figurando no serviço do grande N vermelho sem custo adicional.
Já o segundo ocorreu nesta semana. Foi anunciado que, nos próximos meses, a Netflix passará a ter as transmissões do NASA+, serviço da agência espacial dos Estados Unidos, com os lançamentos de foguetes e missões espaciais. Não chega a ser a primeira live da Netflix, que já testou eventos próprios ao vivo —mas é o primeiro conteúdo do tipo vindo de um parceiro externo.
Netflix com sotaque francês
Por mais de uma década, a Netflix teve uma posição clara: fornecer filmes e séries sob demanda, na hora e no momento que o espectador quisesse, por uma assinatura mensal —e que custasse menos que o preço de um livro ou de dois ingressos de cinema, por exemplo. Com o tempo, a empresa abriu mão de boa parte desse conceito, incorporando publicidade e eventos ao vivo, inclusive esportivos.
Dentro dessa grande transformação, a novidade na França representa um passo tão relevante quanto os anteriores. Pela primeira vez, o serviço de streaming norte-americano incluirá canais com programação linear em sua oferta —um formato que, no passado, a plataforma buscava justamente lutar contra.
Contudo, a mudança de rota faz sentido dentro do atual panorama. O modelo tradicional de canais promove uma audiência inercial —o espectador começa a assistir e permanece por horas. Isso é especialmente característico em redes de televisão dominantes em seus mercados, o que é o caso da TF1. Em vez de concorrer com esse comportamento, a Netflix simplesmente agrega a característica para si.
A própria companhia deixa isso claro no comunicado que anunciou a parceria: "[o espectador pode ficar] sem nunca sair do serviço".
Há, também, um ganha-ganha no conteúdo. Os norte-americanos passam a oferecer produções de qualidade que possuem um grande apelo com o público local, enquanto o grupo francês poderá atingir novos espectadores sem os altos custos envolvidos na venda de uma plataforma direta para o consumidor. Porém, é difícil calcular o impacto exato da operação, já que os detalhes financeiros não foram divulgados.
O acordo pode ser financeiramente vantajoso, considerando as leis francesas que obrigam que os streamings internacionais invistam ao menos 20% de sua receita no país em produções locais ou europeias. Segundo um relatório de um órgão local, o ARCOM, isso representou 1 bilhão de euros entre 2021 e 2024 (R$ 5,4 bilhões, na cotação da época). Uma união mais ampla é apenas uma extensão dessa realidade regulatória.
Por fim, temos um detalhe importante: os intervalos da transmissão tradicional são mais propícios para a veiculação de anúncios —e, muitas vezes, as emissoras disponibilizam parte do tempo para que operadoras agreguem seus próprios comerciais. Se a Netflix abraçar essa iniciativa com publicidade programática, pode ser uma grande jogada.
Risco em potencial
Na prática, trata-se de um grande balão de ensaio. A França tem um dos ambientes regulatórios mais rígidos do mundo para streamings estrangeiros, mas a proposta pode servir de modelo para acordos semelhantes ao redor do mundo.
De principal antagonista da TV por assinatura, a Netflix pode estar prestes a se tornar ela própria uma televisão paga do século 21. E o movimento precisa ser ágil: a Amazon já vem adotando esse caminho há algum tempo, enquanto a Disney fechou recentemente sua primeira parceria nesse formato, com a CazéTV.
Nem tudo é perfeito, claro. Ao abrir mão de seus canais próprios de distribuição e do contato direto com espectadores e assinantes, empresas locais e menores vão deixar muito poder na mão das gigantes do Tio Sam.

Hoje, por exemplo, a TF1+ conta com 35 milhões de contas ativas —número inclui usuários gratuitos e pagos. Mas por que manter a assinatura por 6 euros (R$ 38,56) mensais se, por apenas 2 euros (R$ 12,90) a mais, é possível assinar a Netflix e ter acesso ao melhor dos dois catálogos?
Esse é um jogo que Ted Sarandos, coCEO da companhia dos EUA, quer jogar —até porque tem muito mais a ganhar. Em 2023, segundo a Statista, a plataforma tinha 13 milhões de assinaturas na terra da baguete e do croissant —cerca da metade do streaming da TF1.
A próxima fronteira da Nasa
A parceria com a Nasa é significativa. O conteúdo da agência espacial tem forte apelo entre o público mais engajado da internet —e contar com a Netflix na distribuição certamente ampliará seu alcance. O acordo, no entanto, não é exclusivo.
Para a empresa fundada por Reed Hastings, a iniciativa permite, com uma escala menor, testar a aderência de lives produzidas por terceiros e a robustez dessa entrega.
Neste caso específico, a Netflix também pode se posicionar como uma competidora do YouTube, do Google, que nos últimos anos se solidificou como um caminho para transmissões ao vivo com jornalismo e esportes.
A tendência é que, cada vez mais, a pioneira se comporte como o Amazon Prime Video: um agregador. A diferença, por enquanto, é que nada está sendo dito sobre cobranças adicionais.
De todo modo, uma nova era da televisão por assinatura começa a se consolidar. É como a Uber: nasceu para transformar radicalmente o modelo dos táxis —e acabou, ela mesma, se tornando o novo táxi.
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