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Opinião

'Soccer é um saco': a curiosa relação do futebol com os EUA, o país da Copa

"É oficial: futebol é um saco". Ouvi essa frase de um norte-americano no intervalo de um jogo no Dodger Stadium, em Los Angeles, há alguns anos. A partida era entre Juventus, da Itália, e Los Angeles Galaxy, parte de uma rodada dupla que ainda teria o poderoso Real Madrid contra o Everton, da Inglaterra.

De certa forma, o desabafo resume bem a trajetória curiosa (e muitas vezes conturbada) dos Estados Unidos com o esporte bretão, tanto como entretenimento, quanto como produto comercial. Uma relação que ajuda a entender desde os desafios do atual Mundial de Clubes até os impactos que isso pode ter na próxima Copa do Mundo, que o país sediará com Canadá e México.

O panorama esportivo dos EUA é peculiar, considerando o hemisfério ocidental do mundo. Beisebol e o futebol americano são os esportes mais populares, com o basquete ocupando um espaço relevante. Em quarto lugar, na preferência do público, fica o hóquei no gelo.

O esporte mais assistido no mundo é apenas o quinto em engajamento da população local. O que não significa, porém, que seja um fracasso.

A Major League Soccer (MLS), primeira divisão dos Estados Unidos, registrou na temporada 2024 uma média de 23 mil torcedores por partida, somando um público total de 11,2 milhões. O número é comparável ao do Brasileirão, que teve média de 25 mil por jogo e um total de 9,6 milhões —diferença na soma é explicada pela quantidade menor de times e partidas no Campeonato Brasileiro.

Isso também se reflete em força midiática. Em 2022, a MLS vendeu os direitos de transmissão mundiais para a Apple por US$ 2,5 bilhões (R$ 13,8 bilhões), em um contrato de dez anos —sendo que, no Brasil, as nossas ligas arrecadaram R$ 3 bilhões por cinco temporadas com plataformas e canais locais, informa Rodrigo Mattos no UOL Esporte.

De Pelé...

O soccer, corruptela de association football (para diferenciar do rugby football, que daria origem ao futebol americano), tem uma história antiga para o Tio Sam: a copa nacional é disputada desde 1912. Contudo, a modalidade demorou para engrenar no gosto popular.

Pelé em campo pelo Cosmos, no estádio New York Giants, em 1977.
Pelé em campo pelo Cosmos, no estádio New York Giants, em 1977. Imagem: Getty Images
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Só na década de 1970 que surgiu um movimento para explorar o 'nosso' futebol nos EUA. O principal expoente foi o New York Cosmos, um grande investimento da Warner Communications (sim, a antecessora da Warner Bros. Discovery) e que contou com astros como Pelé, Franz Beckenbauer e Carlos Alberto Torres.

O impacto foi imediato: de uma média de 3.500 pessoas, os jogos passaram a lotar estádios. Porém, o fôlego foi efêmero: o lendário camisa 10 brasileiro se aposentou em 1977, após ser campeão, e a liga —chamada North American Soccer League (NASL)— começou a minguar. O campeonato chegou ao fim em 1984.

O ponto de virada foi a FIFA: a entidade escolheu os EUA como sede da Copa do Mundo de 1994. O país tinha estádios prontos (a maioria para futebol americano), estrutura e experiência na organização de grandes eventos. E o mais importante: o futebol tinha atraído bons públicos nos Jogos Olímpicos de 1984, em Los Angeles, provando que a fagulha dos tempos de Pelé ainda estava lá.

Havia, porém, um problema crucial: o país não tinha mais um campeonato nacional profissional. Por exigência da entidade mundial, a Major League Soccer teve a sua temporada inaugural em 1996.

...a Messi

O futebol teve ainda dois grandes eventos canônicos em sua aventura norte-americana. O primeiro foi em 2007, com a chegada de David Beckham. Ex-Real Madrid da era dos Galácticos, o inglês desembarcou na MLS com status de superestrela.

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A própria liga precisou mudar suas regras. Até então, mantinha um rigoroso controle financeiro —uma lição dos fracassos da antiga NASL. Para acomodar Beckham sem quebrar o teto salarial, nasceu a Regra do Jogador Designado, uma exceção que permite a contratação de atletas acima desse limite, desde que o restante do elenco siga as normas.

Quando se despediu do Galaxy, em 2012, o inglês via uma nova realidade. Outros jogadores de renome seguiram seu exemplo, enquanto o público cresceu nos estádios. Mais importante do que isso, até: os times perceberam que não fazia sentido jogar em grandes estádios construídos para o futebol americano, com campos fora de especificações e muitos lugares vazios. Adotaram arenas menores em tamanho, ainda que modernas, e construídas especificamente para o futebol.

De certa maneira, a MLS entendeu que ela não escaparia do destino de ser a quinta força no país —mas que poderia fazer bonito e prosperar nessa posição.

Em 2018, David Beckham entrou em uma sociedade para ter o seu próprio time nos Estados Unidos. O Inter Miami estreou nos gramados em 2020. Em 2023, contratou o argentino Lionel Messi. Ciclo completo.

Messi durante jogo entre Inter Miami e Al Ahly no Mundial de Clubes
Messi durante jogo entre Inter Miami e Al Ahly no Mundial de Clubes Imagem: Hannah McKay/REUTERS

Hoje, a Major League Soccer é uma potência financeira. Segundo um estudo da SportsValue, divulgado no ano passado, a liga ocupa a 14ª posição entre as competições esportivas que mais geram receita no mundo, com faturamento anual de US$ 2 bilhões (R$ 11 bilhões). É bem menos que a NFL, do futebol americano, que lidera o ranking com US$ 19,2 bilhões (R$ 105,5 bilhões). Ainda assim, a MLS já supera o Brasileirão, cuja receita anual é de US$ 1,4 bilhão (R$ 7,7 bilhões).

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Destino de verão

Não demorou para que os clubes europeus e promotores de evento percebessem a demanda local pelo soccer.

Diversas equipes europeias passaram a fazer parte da pré-temporada sob os olhos do Tio Sam. Um dos pontos altos dessa relação foi a International Champions Cup, que colocou alguns times locais e expoentes como Real Madrid, PSG e Barcelona para jogarem entre si.

O jogo que abre esta coluna aconteceu em 2013, em um estádio de beisebol —que, mal-adaptado para o futebol, não facilitou para os jogadores em campo, mesmo um deles sendo Cristiano Ronaldo. Some-se a isso o fato de ser apenas um amistoso sem grandes pretensões, temos a reação do espectador: a de total frustração.

Público diverso

Ao longo dos anos, acompanhei de perto diversas partidas nos Estados Unidos —desde jogos da MLS até amistosos internacionais e confrontos da League's Cup, torneio que reúne equipes americanas e mexicanas. A partir dessa experiência, é possível observar de forma empírica o perfil do público que frequenta os estádios.

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Nas regiões com forte presença latina, uma parte importante da torcida dos times locais é formada por filhos e netos de imigrantes. Este é um perfil demográfico (e consumidor) cada vez mais relevante dentro daquele país. Já quem nasceu fora dos Estados Unidos, especialmente mexicanos, costuma manter a preferência pelos clubes de seus países de origem.

Também há outro segmento de público, formado por norte-americanos sem vínculos latinos, muitas vezes associados ao estereótipo do torcedor tradicional dos EUA. Eles se aproximam do futebol atraídos por grandes estrelas, pela curiosidade com o esporte ou pelo crescimento da prática nas escolas, especialmente entre crianças. Não por acaso, a média de idade do torcedor da MLS é de 39,6 anos — a mais jovem entre as principais ligas dos Estados Unidos, segundo a YouGov.

Ao mesmo tempo, a MLS busca expandir para regiões relevantes economicamente, mas que não possuem times ou uma representação forte nas outras quatro ligas esportivas do país —incluindo cidades como Austin (Texas), Orlando (Flórida), Portland (Oregon), Salt Lake City (Utah), San Diego (Califórnia) e Columbus (Ohio).

É algo tão forte que, nos últimos anos, os próprios fãs norte-americanos iniciaram um movimento para que o esporte deixe, de vez, de ser chamado de soccer no país, adotando o tradicional football. Tanto que as agremiações mais novas na liga passaram a usar a sigla "FC" em seus nomes.

Lugares vazios

Na ambição internacional, talvez os Estados Unidos tenham dado um passo maior que a perna. O Mundial de Clubes, disputado em alguns dos maiores estádios do país, sofre com baixa procura por ingressos e lugares vazios. O uso de arenas como o Rose Bowl, que tem quase 90 mil lugares, agrava ainda mais o problema — e cria uma percepção negativa.

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Torcidas do Seattle Sounders e Botafogo no Lumen Field, para jogo do Mundial de Clubes 2025: nem todos os assentos foram ocupados
Torcidas do Seattle Sounders e Botafogo no Lumen Field, para jogo do Mundial de Clubes 2025: nem todos os assentos foram ocupados Imagem: UOL/Julio Gomes

Isso sem falar de torcedores que estão com medo de deportações durante os jogos de seus times do coração —e desistiram de acompanhar o torneio, como noticiado no UOL Esporte.

Para piorar, há o fogo amigo: o país também está recebendo, de forma concomitante, a edição 2025 da Copa Ouro, o torneio de seleções da Concacaf— o equivalente à Copa América deles. Além disso, a MLS não fez uma pausa na atual temporada, continuando com as partidas em junho e julho. Haja jogos.

Caberá aos turistas preencher boa parte das arquibancadas.

Seja como for, o soccer pode até ser um "saco" —mas o football, esse segue em frente. Nunca será o astro principal, é verdade, mas já aprendeu a ocupar seu espaço no palco.

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Opinião

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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