'Anora', Amazon e James Bond: 2025 coloca Hollywood de cabeça para baixo

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A 97ª edição do Academy Awards —o Oscar deste ano— teve um momento tão inesperado quanto constrangedor. Ícones da música mundial subiram ao palco para interpretar temas icônicos dos filmes de James Bond, enquanto as câmeras focaram Barbara Broccoli e Michael G. Wilson na plateia. Os produtores, que há três décadas comandam a franquia, responderam com sorrisos amarelos. O motivo? O que deveria ser uma homenagem soou mais como um funeral simbólico: dias antes, eles haviam vendido o controle criativo do personagem para a Amazon por uma pequena fortuna.
Na mesma noite de 2 de março, o cineasta Sean Baker subiu ao palco quatro vezes —levando as estatuetas de melhor roteiro original, montagem, direção e filme do ano. Dois momentos aparentemente distintos, mas que, de uma forma curiosa, estão conectados.
Talvez a trilha sonora ideal para a maior premiação do cinema mundial fosse um verso de Caetano Veloso: "Alguma coisa está fora da ordem. Fora da nova ordem mundial."
As pessoas permanentes
Nos anos 1960, os produtores Albert R. "Cubby" Broccoli e Harry Saltzman levaram com sucesso a criação do escritor Ian Fleming para a tela grande, em "007 Contra o Satânico Dr. No". Nascia uma franquia bem-sucedida que perdura por mais de 60 anos, com 25 filmes.
Cubby (que, depois, comprou a parte de Saltzman), sua filha Barbara e seu enteado Michael mantiveram o espião vivo por todo esse tempo graças à habilidade de navegar pelos bastidores de Hollywood. A United Arts —e, depois, a sua sucessora, a MGM— era sócia, mas eram os Broccolis (todos de origem americana, diga-se) quem ditavam os rumos criativos e comerciais. Eles sempre preferiram o cinema, com projetos que muitas vezes levavam anos para serem concretizados. Valiam-se do sistema dos estúdios, enquanto mantinham a sua independência criativa. Nesse sentido, lembra muito o que George Lucas fez por décadas com "Star Wars".
Uma forma inteligente para se trabalhar, diga-se.
Um dos legados de Cubby para seus filhos foi justamente não permitir que pessoas de fora, principalmente executivos de momento no estúdio, interferissem em sua herança cinematográfica. "Não deixe que pessoas temporárias tomem decisões permanentes", teria dito o produtor à Barbara. Afinal, executivos vêm e vão. James Bond fica para sempre.
Acontece que, em 2022, Jeff Bezos chegou. A Amazon, fundada pelo executivo, adquiriu a MGM por US$ 8,5 bilhões (R$ 50 bilhões, em valores de hoje). Junto vieram os direitos de distribuição da franquia 007, mas nenhum controle criativo. Depois de anos sem se entender, e com uma polêmica reportagem de The Wall Street Journal afirmando que Barbara Broccoli teria chamado os novos sócios de "idiotas de merda", a gigante do e-commerce resolveu agir.

De acordo com The Hollywood Reporter, a empresa de Bezos teria oferecido algo próximo a US$ 1 bilhão (quase R$ 5,8 bilhões) para assumir todas as decisões referentes ao personagem, além de uma participação nos ganhos futuros. Barbara, agora com 64 anos, e Michael, com 83, cansaram das discussões com as pessoas temporárias e aceitaram.
O atual estado das coisas
Muita gente foi pega de surpresa com a decisão, informa a mesma reportagem do THR —inclusive os produtores musicais do Oscar, que não tiveram outra escolha a não ser seguir em frente com um dos momentos mais constrangedores dos quase 100 anos da premiação. E olha que não faltam passagens embaraçosas em sua história.
Essa decisão reflete o atual momento de Hollywood. Neste século, a indústria foi tomada por executivos e empresas de fora, com muito dinheiro e outra mentalidade. Uma gigante como a Amazon não investe no audiovisual por capricho, muito menos porque acredita que o cinema —sozinho— é um ótimo negócio. O serviço de streaming Prime Video é parte de uma engrenagem maior, que busca atrair consumidores e retê-los por mais tempo. Você chega por causa do James Bond, mas quando vê está comprando papel higiênico e ketchup nas compras recorrentes.
"Ars gratia artis", frase em latim estampada no logo da MGM que quer dizer "arte pela arte", nunca foi tão fora de moda entre esse pessoal.
De forma totalmente conectada, a revolução do vídeo sob demanda mudou o equilíbrio de forças e até a forma como todos nós consumimos filmes e séries.
Nesse cenário, o controle quase draconiano da família Broccoli deixou de fazer sentido. Por um investimento de quase US$ 10 bilhões (e contando), os novos donos querem extrair o máximo possível. Até uma série sobre a Moneypenny, a clássica secretária do chefe do MI6, foi conjecturada, diz The Hollywood Reporter.
Mesmo a Netflix, que não tem a mesma estrutura diversificada de modelo de negócio, passa pela mesma questão. As "propriedades intelectuais de conteúdo", como esses "novatos" gostam de chamar, estão ali pela assinatura.
Essa é a nova ordem mundial, no qual cinema e streaming não são o fim, mas apenas um meio.
Entra Sean Baker e "Anora"
A comunidade de Hollywood sentiu esse baque. A resposta a essa realidade tem vindo por diversos lugares, mas principalmente via Oscar.
Na premiação, os membros da Academia têm cada vez mais privilegiado produções realmente independentes, no sentido clássico do termo: com orçamentos baixos e fora da máquina industrial dos estúdios.
"Anora" é o exemplo-mór disso. Sean Baker assinou o roteiro, a direção e a montagem sozinho, além de ter produzido. Recebeu os louros do Academy Awards deste ano por todos esses feitos, em uma conquista equiparável apenas a Walt Disney. Até mesmo a distribuição merece ser mencionada: foi feita pela Neon, que tem apenas oito anos de existência (e um outro Oscar de melhor filme, por "Parasita").
O trabalho de Baker vai além disso. O cineasta é um fervoroso defensor do chamado "cinema indie", tendo realizado longas como "Tangerina" e "Projeto Flórida". Não se trata de alguém que, com pouco, realizou muito e agora está ansioso para fazer parte do sistema. Os membros da Academia perceberam isso e, em um ano complicado e polêmico, o escolheram como um exemplo idealístico.

Por motivos diferentes, a homenagem do Oscar à Barbara Broccoli e Michael G. Wilson —que receberam uma estatueta honorária em uma cerimônia privada realizada em novembro— servia aos mesmos objetivos. Uma declaração contra esse novo estado das coisas.
Não deu certo.
A indústria do cinema precisa se entender
Há uma fratura em Hollywood, e todos os lados perdem com isso.
Mais uma vez, o Oscar é um exemplo. Não que isso seja algo novo e inédito, mas a premiação está se fechando ainda mais em si mesma. "Anora", por exemplo, faturou apenas US$ 46 milhões (R$ 267 milhões) na bilheteria mundial até aqui —mostrando que pouca gente assistiu ao filme.
Momentos como o de "Oppenheimer", que uniu alcance com o público e aclamação artística na cerimônia do ano passado, se tornaram ainda mais raros. Isso reduz a relevância do Academy Awards para o espectador casual, refletindo uma indústria que, hoje, precisa lutar não contra Netflix e Amazon, mas sim contra o TikTok.
Bravatas públicas, discussões e declarações pesadas só farão com que Jeff Bezos e outros bilionários continuem assinando cheques, esquecendo que o conteúdo precisa ter alma.
Isso fica claro com o próprio anúncio da venda da franquia James Bond. Foi um comunicado à imprensa sobre a formação de uma joint venture, com uma mudança em um contrato. Não veio, junto, o nome de um produtor envolvido ou nada na perspectiva criativa —o que assusta mais do que acalma.
Como vemos, o futuro da indústria audiovisual passa por encontrar o ponto exato entre "arte pela arte" e "negócios são negócios", sem que um destrua o outro.
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