'Ainda Estou Aqui': grupo propõe reforma em seleção brasileira para o Oscar

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O sucesso de "Ainda Estou Aqui", que concorre a três estatuetas no Oscar 2025, expôs um problema antigo: por que o Brasil ficou 26 anos fora da premiação? Para cineastas ouvidos por esta coluna, a resposta não está na qualidade das produções nacionais, mas em falhas na seleção do representante brasileiro. Agora, eles defendem que o impacto do longa-metragem estrelado por Fernanda Torres seja o ponto de partida para uma reforma mais profunda.
Nos bastidores, esse grupo começou a se mobilizar por mudanças já em 2022. "Víamos vícios absurdos. Coisas muito problemáticas nos processos anteriores", afirma Felipe Haurelhuk, um dos integrantes do movimento. O cineasta aponta falhas como a ausência de edital com prazos adequados, decisões de última hora e reuniões restritas a poucas pessoas. Desde então, as melhorias foram apenas parciais, segundo ele.
A escolha dos longas elegíveis para a categoria de melhor filme internacional é feita por cada país. No Brasil, a responsabilidade foi por décadas do governo, mas, desde a gestão Bolsonaro, passou a ser exclusiva da Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais, devido a preocupações com a ingerência política. É nessa entidade que, hoje, ocorre o movimento por mais mudanças.
Definição tardia
O movimento ganhou tração em dezembro de 2021, quando "Deserto Particular", a escolha do Brasil para o Oscar 2022, ficou de fora da lista de filmes que avançaram para a votação dos membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos EUA (a AMPAS). Após o insucesso, pessoas ligadas à produção, incluindo o diretor Aly Muritiba e o produtor Antônio Junior, enviaram uma carta à instituição brasileira, compartilhando aprendizados e se unindo "à vontade coletiva de reconstrução do processo de seleção".
"O Brasil foi, naquele ano, um dos últimos países a definir seu candidato ao Oscar de melhor filme internacional, o que reduziu significativamente o tempo disponível para um trabalho estratégico e eficaz", contextualiza Juliana Sakae, coordenadora da campanha do longa na premiação, que também assina a carta.
Segundo ela, a corrida pela estatueta exige uma série de ações em um prazo muito curto: captação de recursos, compra de anúncios em revistas e jornais especializados, contratação de uma agência de relações públicas experiente, organização de exibições para votantes e garantia de distribuição nos Estados Unidos. Com a definição tardia, muitas dessas etapas se tornaram inviáveis, diz.

"Além disso, a crítica especializada costuma cobrir apenas títulos com distribuição nos EUA, uma negociação que pode durar meses para se concretizar", afirma a cineasta.
O Consulado-Geral do Brasil em Los Angeles compartilha da mesma opinião. Entre outras funções, a instituição tem a missão de divulgar a cultura do nosso país na região onde atua. Por isso, possui especial interesse no Oscar, oferecendo um apoio financeiro e institucional na divulgação das produções brasileiras selecionadas.
Em 2021, o então cônsul-geral, Marcelo Dantas, pediu, em outra carta a que esta coluna teve acesso, a antecipação da escolha, entre outras reivindicações. "É durante a temporada de festivais, entre maio e outubro, que são estabelecidos os principais concorrentes das premiações de final de ano", explicou no documento.
Novo cronograma
Após as reivindicações, a Academia Brasileira instituiu o grupo de trabalho em 2022. Participaram cerca de 20 pessoas, incluindo nomes como Aly Muritiba e Simone Oliveira (então chefe da Globo Filmes), além dos programadores do Hollywood Brazilian Film Festival, entre outros executivos.
Feitas as sugestões, a entidade implementou algumas mudanças. Entre as alterações estão a antecipação do fim do processo (de novembro para setembro), a criação de uma seleção em duas etapas e a ampliação do número de cadeiras no comitê.
Contudo, o consulado vê espaço para mais melhorias. "O ideal seria que ocorresse ainda mais cedo", compartilha Mariana Benevides, diplomata chefe do setor cultural do órgão em Los Angeles.
Além disso, para Mariana, é essencial aprimorar o processo de seleção para maximizar as chances na corrida. "A escolha precisa ser estratégica, priorizando filmes que tenham potencial real de conquistar a audiência internacional e, sobretudo, atrair a atenção dos votantes da Academia [dos EUA]."
"[Hoje] A indicação do filme representante brasileiro ao Oscar é feita por uma comissão composta por 25 membros", explica Paulo Mendonça, que é vice-presidente da Academia Brasileira de Cinema. "Desde a pandemia, as reuniões têm sido realizadas virtualmente, até por conta do número de participantes e pela grande quantidade de representantes de diferentes estados. Os encontros levam o tempo necessário para as deliberações. O presidente da comissão, eleito dentre os membros pelos próprios participantes, procura conduzir a reunião por um tempo de duas horas."
Mendonça acrescenta que o atual tamanho da comissão procura propiciar a diversidade de opiniões. "O formato tem se mostrado bastante eficiente e é similar ao adotado pelas demais academias membros da Fiacine, Federação Ibero-americana de Academias de Cinema", complementa.
Para Felipe Haurelhuk, o novo procedimento também é falho. "O prazo final de inscrição dos produtores e o período entre esse prazo e a primeira reunião da comissão normalmente não excedem 15 dias. Em média, há cerca de 25 a 30 filmes inscritos. Você realmente acha que é possível realizar um estudo e uma escolha qualificada dos títulos em um processo tão apertado, no qual, teoricamente, os membros precisariam assistir a mais de um filme por dia para avaliar todos? Isso compromete a qualidade do processo de escolha", argumenta o cineasta. "Por que 4 dos 25 membros são indicados diretamente pela diretoria?"
"A comissão é absolutamente independente para indicação, sendo que presidente e vice-presidente da Academia não fazem parte da comissão", defende Paulo Mendonça.
O exemplo de "Ainda Estou Aqui"
O sucesso de "Ainda Estou Aqui" comprova as críticas, na visão do movimento. A escolha da produção como representante brasileiro do Oscar ocorreu apenas em 23 de setembro de 2024, 85 dias antes da divulgação da lista dos pré-indicados elegíveis pela Academia de Hollywood — e após o fim da temporada de grandes mostras internacionais
Contudo, o longa nacional já havia passado com bastante sucesso pelos festivais de Veneza e Toronto, realizados semanas antes, além de ter garantido a distribuição nos EUA, por meio da Sony Pictures Classics. Isso sem mencionar que o diretor Walter Salles, herdeiro do império do Itaú Unibanco, é o terceiro cineasta mais rico do mundo de acordo com a Forbes, ficando atrás apenas de Steven Spielberg e George Lucas.

Esse acesso permitiu que "Ainda Estou Aqui" tivesse um caminho menos conturbado, mas que ainda não atingiu o ideal. Para Juliana Sakae, o longa-metragem poderia já ter estreado em Veneza como o candidato brasileiro, "mas o processo uma vez mais foi feito atrasadamente e, assim, o filme perdeu uma oportunidade importante de campanha".
A relevância do Oscar
Um ponto levantado pelas fontes ouvidas pela coluna é que a Academia Brasileira não dá a devida atenção à maior festa da sétima arte mundial.
"Existe uma parte da indústria que historicamente deixa o Oscar de lado. Que pensava o seguinte: 'O cinema brasileiro é muito bom, é especial, mas não precisaria ter um Oscar', que seria um validador do cinema dos Estados Unidos", explica Waldemar Dalenogare, crítico que também fez parte do grupo de trabalho em 2022. "Eu sempre me posicionei contra isso, porque a premiação dá uma visibilidade extraordinária."
"Ainda Estou Aqui" comprova essa visão. No Brasil, o longa já conta com a quinta maior bilheteria para um filme nacional na história — isso sem falar no verdadeiro fenômeno cultural que virou. Nos EUA, a produção arrecadou US$ 4,2 milhões (cerca de R$ 24 milhões) e, no momento, é a 27ª maior bilheteria do ano.
"Falta uma ponte entre problemas do mercado com as questões da indústria nacional. A Academia Brasileira poderia ser essa intermediária, mas não faz isso quando não ocupa espaço em festivais, não se coloca de forma proativa junto ao diálogo. Espero que 'Ainda Estou Aqui' faça essas mudanças", reflete Dalenogare.
O debate sobre o cinema brasileiro precisa avançar para que não se passem mais 26 anos até um novo retorno ao Oscar. Só assim vamos poder dizer a Hollywood nos próximos anos, com força e orgulho: "Ainda estamos aqui".
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