M. M. Izidoro

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Opinião

Nossos heróis sempre morrem no final

Liga a TV, vai ao cinema, abre um livro de literatura brasileira que conta as histórias dos nossos grandes heróis nacionais.

Zumbi dos Palmares vira livro e morre no final. Tiradentes vira peça de teatro e morre no final. Lampião e Maria Bonita viram novela e morrem no final.

Praticamente todos nossos heróis nacionais e todas suas histórias terminam da mesma forma: com morte no final.

Quando a gente aprende história na escola, quando assiste nossos filmes, quando lê nossa literatura, parece que todos os nossos heróis têm o mesmo destino: a tragédia.

Todos eles lutaram contra sistemas que os oprimiam, todos eles deixaram marcas profundas no nosso país, e todos eles morreram sem o júbilo da vitória.

Eu fico pensando se essa repetição constante nas nossas narrativas culturais não moldou a nossa cabeça de um jeito muito específico. Se não criamos uma ideia de que ser herói no Brasil é sinônimo de sacrifício. Que para fazer diferença, você precisa literalmente morrer. Que a única maneira de ser lembrado é através da tragédia.

Isso acontece com as personagens do Cidade de Deus, mas também acontece nas nossas vielas e rincões, onde ao vivo na TV e no portal de notícias estamos vendo a mesma história se repetindo todos os dias.

Herus Guimarães Mendes, de 24 anos, office boy e pai de uma criança de dois anos, foi morto durante uma festa junina no Morro Santo Amaro, no Rio. Assim como faleceu Kathlen Romeu e também Victor Cerqueira, o "Vitinho", de 28 anos, guia turístico em Caraíva. E assim como Tiradentes e Zumbi, Ku'i, um jovem indígena do povo Avá Guarani, foi decapitado e teve sua cabeça exposta nas terras do seu povo no sul do país.

Jovens que poderiam ser heróis de suas famílias e comunidades, mas só tiveram a chance de ter o mesmo final dos nossos grandes heróis nacionais.

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Mas tem uma coisa que me chama atenção: mesmo com toda essa dor, mesmo com tanta violência, o povo brasileiro não para de viver e de criar vida. Não para de fazer festa. Não para de ter fé em dias melhores.

A festa junina no Santo Amaro estava cheia de famílias, crianças e quadrilhas se apresentando. Vitinho estava trabalhando, levando turistas para conhecer Caraíva. MC Poze estava fazendo música para as massas quando foi preso.

Essas eram pessoas vivendo, criando, se conectando. Eram pessoas escolhendo a vida, mesmo sabendo dos riscos.

Tem gente nascendo nas quebradas todos os dias. E se tem gente nascendo, tem gente se conhecendo, se apaixonando, construindo família. Tem gente plantando horta na laje, pintando mural na parede, ensinando as crianças a ler. Tem gente fazendo música, poesia, comida deliciosa para comer depois de agradecer a Deus no domingo. Tem gente resistindo através da alegria.

Mas a gente precisa contar essas outras histórias também. Não só as de superação - que já é um saco esse papo de que marginalizados tem que superar tudo sozinho - mas as histórias de felicidade simples. De gente que conseguiu viver uma vida boa, tranquila, sem virar mártir. Histórias que mostram os a margem, como gente. Não como bandidos ou alvos ambulantes.

Os manifestantes em Caraíva levantaram cartazes dizendo "Favelado não é bandido", tal qual o pai de Herus falou do seu filho. Isso é óbvio, mas precisou ser dito. E isso me lembra que talvez seja hora da gente escrever histórias onde o "de baixo" é doutor, é artista, é pessoa feliz. Onde jovem preto, indígena, LGBTQIAPN+ não precisa morrer para ser lembrado como herói.

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Talvez se a gente começar a plantar essas narrativas de vida, de festa, de amor que deu certo, fique um pouco mais fácil conseguir vivê-las na vida real.

Talvez se a gente parar de fetichizar a violência e a romantizar a morte dos nossos heróis e começar a celebrar a vida dos nossos vivos, menos Herus e Vitinhos tenham que virar símbolos póstumos.

Nossos heróis podem viver, rir, dançar forró e criar filhos que vão mudar o mundo do jeito deles. Essa também é uma forma de resistência: A felicidade. Talvez a maior delas junto do Amor, com "a" maiúsculo.

É por isso que eu faço um chamado para todos os artistas, roteiristas, escritores, diretores e contadores de história que estão me lendo: vamos procurar e contar outras narrativas. Vamos criar personagens que lutam e vencem sem morrer. Vamos mostrar heróis que constroem escolas, que viram médicos, que fazem arte e transformam suas comunidades sem virar mártires. Pretos que amam. Gays que constituem família. Indígenas que fazem festa.

Histórias daqueles que celebram sua fé sem resistência. Que fazem sua festa sem violência. Que cuidam da sua família sem ficarem órfãos. Que fofocam rindo e sem chorar.

O preto e branco do mocinho de farda e do bandido de fuzil é fácil. Mas a vida não é fácil. Amar não é fácil. Mas se a gente atravessar esses vales, dá pra sair muito bem do outro lado.

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Se a gente conseguir plantar essas histórias de vida nos nossos filmes, livros e peças, talvez a vida real comece a imitar a arte de um jeito mais bonito. Nosso imaginário coletivo fica mais leve, mais florido, mais feliz.

Talvez assim nossos jovens cresçam sabendo que podem ser heróis vivos, no agora.

As histórias que contamos criam mundos que queremos habitar e reproduzir. Tá na nossa mão criar os mundos que queremos habitar nas telas e nas nossas comunidades. Bora mostrar que dá pra ser feliz?

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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