M. M. Izidoro

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Opinião

Vamos regular o streaming? Cultura brasileira merece mais do que algoritmos

Na última semana, aconteceu o Rio2C. Um evento gigante no Rio de Janeiro que reúne grande parte da indústria criativa brasileira. Eu estive lá e pude acompanhar um painel com uma das discussões mais importantes que a indústria audiovisual brasileira pode ter nesse momento.

Nesse painel, a secretária do audiovisual Joelma Gonzaga subiu no palco e falou sobre a regulação do VOD no Brasil. E eu digo mais, não apenas esse assunto é importante, como o Brasil precisa regular suas duas maiores máquinas de entretenimento e cultura digital —o streaming e a economia de criadores.

Estamos vivendo um momento curioso da nossa história digital. O Brasil não apenas se tornou o país com mais influenciadores do mundo —ultrapassamos até os Estados Unidos nessa corrida— como também somos um dos maiores consumidores de vídeo sob demanda do planeta.

Somos uma potência criativa global, mas vivemos sob as regras de outros. E aqui está o paradoxo que me incomoda: enquanto produzimos conteúdo que emociona, educa e transforma milhões de pessoas ao redor do mundo, nossas plataformas digitais operam em um vácuo regulatório total.

Streaming precisa de regulamentação
Streaming precisa de regulamentação Imagem: iStock

As Big Techs do Vale do Silício, e agora da China, são gigantes que movimentam bilhões em território brasileiro e acabam muitas vezes levando embora muito dos resultados financeiros e culturais para seus países de origem.

"É importante que elas estejam aqui, mas nós queremos que elas se harmonizem com a nossa política pública do audiovisual", disse a secretária Joelma no painel. E eu concordo com ela. Esses serviços nos facilitaram acesso, produção e conexão com milhares de histórias do mundo todo. Elas alimentaram a produção brasileira em um momento muito complicado da nossa indústria com o fim do Ministério da Cultura na gestão presidencial anterior e com a pandemia da covid-19.

Mas agora, está na hora de conversarmos. Com a gente sendo um dos maiores consumidores de audiovisual do planeta, é uma grande oportunidade de sermos um dos grandes produtores do mundo também. "Essa é a chave para transformar o Brasil no país do cinema", disse a secretária Joelma.

Ana Paula Passarelli, da Brunch, uma das principais vozes quando falamos de creator economy no Brasil, sempre diz: "Quem trabalha com marketing de influência, tem que ser crítico desse mercado para desenvolver algo melhor". E ela está certa. Começamos a correr antes de aprender a andar. Criamos um mercado bilionário —que movimenta cerca de US$ 300 bilhões (R$ 1,7 tri) anualmente no mundo— sem pensar nas consequências ou responsabilidades que isso traz.

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Segundo pesquisas do IAB Brasil, 92% dos brasileiros já seguiram dicas de influenciadores digitais e 82% já compraram produtos após recomendações desses criadores. Isso significa que esses profissionais têm um poder de influência sobre decisões de consumo muitas vezes maior que qualquer mídia tradicional. E isso não é assunto para ser levado na brincadeira.

Apps de streamings na TV
Apps de streamings na TV Imagem: Renan Martins Frade

O Conar já deu o primeiro passo importante. Em 2020, criou o Guia de Publicidade por Influenciadores Digitais, estabelecendo que todo conteúdo publicitário deve ser sinalizado com expressões como "#publi", "#publicidade" ou "#parceria paga". É um avanço, mas é apenas a ponta do iceberg.

Agora, com os sites de apostas de quota fixa, as famosas Bets, tomando conta da comunicação digital e offline. CPIs acontecendo, histórias de golpes digitais, web bullying e outras situações não tão legais. Está na hora de regularmos e responsabilizarmos as pessoas na internet, assim como a gente faz na "vida real"

E regulamentar, não é proibir. E também não é algo fácil. Quando falamos de streaming, a conversa fica complexa. As propostas de regulamentação em tramitação no Congresso pedem coisas como: que uma parte do conteúdo seja obrigatoriamente nacional nos catálogos, investimento mínimo do faturamento em obras brasileiras, e contribuição para o Fundo Setorial do Audiovisual através da Condecine.

Isso já ocorre na TV por assinatura, nas salas de cinema, na TV aberta. Só falta no streaming. Mas com o tamanho deles, pode ter um impacto gigante na nossa indústria, cultura e economia com bilhões de reais entrando na produção e distribuição de obras brasileiras. Quanto a falta desse dinheiro, e até serviço no geral, se eles resolverem ir embora do país ao invés de cumprir a regulação.

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E não é invenção de brasileiro, isso não. Países como França exigem 60% de conteúdo europeu e 40% em francês. O Canadá obriga contribuição de 5% da receita para fundo de conteúdo nacional. A União Europeia como um todo estabelece cota mínima de 30% de obras europeias. Por que o Brasil deveria ser diferente?

A questão não é criar barreiras, é criar equilíbrio. Quando uma plataforma internacional opera aqui sem nenhuma obrigação local, ela está competindo com vantagem desleal contra nossas TVs abertas e fechadas, que precisam cumprir quotas e investir em produção nacional.

É aí que vejo a importância dessa conversa que estamos finalmente tendo. Não se trata apenas de arrecadação ou protecionismo. Trata-se de criar um mercado saudável onde a nossa cultura possa respirar, crescer e se espalhar para o mundo.

Imagina um Brasil onde as plataformas de streaming sejam obrigadas a investir pesado em nossos criadores e nossas histórias? Onde nossos influenciadores tenham diretrizes claras sobre responsabilidade social? Onde a diversidade não seja apenas uma hashtag, mas uma obrigação legal? Onde podemos mapear e responsabilizar criadores e pessoas que espalham conteúdos danosos e falsos por aí?

Seria um país onde nossa criatividade não fica refém de algoritmos criados em outros continentes, onde nossas histórias ganham o destaque que merecem em nossa própria casa. O caminho não é simples e nem vai ser rápido. Vamos precisar sentar na mesa com todo mundo: criadores, plataformas, governo, sociedade civil. Vamos ter que ouvir reclamações, ajustar propostas, encontrar o meio-termo entre proteção e liberdade.

Mas vale a pena. Por que no fim das contas, regular essas indústrias é sobre garantir que nossa cultura continue sendo nossa. É sobre dar aos nossos criadores as mesmas condições que os criadores de outros países têm. É sobre fazer com que quando alguém pense em conteúdo de qualidade, pense automaticamente no Brasil.

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É sobre não só pensar em produzir, mas como fazer nossas histórias chegarem nos brasileiros e no resto do mundo. mos construir um mercado que não apenas consome cultura, mas que a cria, a celebra e a espalha pelo mundo inteiro.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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