Inglês, português: Kleber Mendonça prova que nem tudo cabe em outro idioma

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Todo o Brasil já sabe que Kleber Mendonça Filho e Wagner Moura ganharam prêmios de melhor diretor e melhor ator no Festival de Cannes desse ano pelo filme "O Agente Secreto", continuando assim a grande tendência do cinema brasileiro ser fodão.
Mas eu estava aqui pensando sobre o Kleber Mendonça Filho subindo naquele palco em Cannes. Ao invés de fazer um discurso todo em inglês ou francês, como todo mundo espera nesses momentos, ele decide falar em português também.
"Queria mandar um abraço para todos que estão assistindo no Brasil, especialmente no Recife, em Pernambuco", disse ele, alternando entre francês, inglês e português durante seu agradecimento.
E eu fiquei pensando no quanto isso é absurdo de incrível. Me diz um diretor gringo que falaria em três línguas assim fluente ganhando um prêmio internacional, bicho. Tem de ser do Brasil. Tem de ter o molho do Nordeste brasileiro.
Não sei se você já reparou, mas temos uma tendência muito forte de abandonar nossa língua nos momentos que deveriam ser os mais importantes das nossas vidas. Quando queremos ser "internacionais", quando queremos ser "profissionais", quando queremos mostrar que somos "cultos".
É como se o português não fosse suficiente para carregar nossos sonhos mais altos.
Mas a nossa língua é nossa casa, gente. É o lugar onde nossos pensamentos nasceram, onde nossas emoções aprenderam a se expressar, onde nossas memórias mais antigas estão guardadas. Quando a abandonamos nos momentos cruciais, é como se estivéssemos dizendo que nossa casa não é boa o suficiente para receber as visitas mais importantes.
O Kleber entendeu isso de um jeito que me emocionou profundamente. Ele estava ali, no maior festival de cinema do mundo, "na catedral do cinema do planeta", como ele mesmo disse, e fez questão de falar na língua que o formou como pessoa e como artista.
Por que isso importa tanto?
Porque quando falamos em português, especialmente em espaços que historicamente não nos pertencem, estamos fazendo muito mais do que traduzir palavras. Estamos carregando séculos de cultura, de resistência, de jeitos únicos de ver o mundo que só existem na nossa língua.
Tem coisas que não cabem em outras línguas. Tem jeitos nossos de sentir saudade que o inglês não consegue traduzir. Tem nossa maneira de falar de amor, de família, de comunidade, que o francês não alcança completamente. Tem nossa forma de contar histórias, com nossos causos, nossas gírias, nossos silêncios entre as palavras, que se perde quando a gente tenta ser outra coisa.
E é essa maneira de se expressar e de ver o mundo que faz o nosso cinema e a nossa música produzirem alguma das maiores obras do planeta.
E não estou dizendo que é errado falar outras línguas. Pelo contrário. O próprio Kleber mostrou como é bonito transitar entre elas, usar cada uma no seu momento certo. Mas o que me chamou atenção foi ele não ter esquecido de onde veio, não ter achado que para ser reconhecido mundialmente precisava deixar sua origem na porta.
Isso me lembra de quantas vezes eu mesmo já fiz isso. Quantas vezes, em situações que eu achava importantes, eu tentei soar mais "internacional", mais "sofisticado", ignorar meu sotaque e minha história, deixando de lado jeitos de falar que eram genuinamente meus. Como se o que vinha de mim naturalmente não fosse bom o suficiente.

Mas tem uma coisa que eu aprendi observando pessoas como Kleber: a autenticidade é nossa maior força. Quando a gente fala de onde realmente vem, quando não escondemos nossa origem, nossa cultura, nossa maneira única de ver o mundo, é aí que nos tornamos interessantes de verdade. É aí que a gente tem algo único para oferecer ao mundo.
O filme que levou o prêmio se passa no Recife dos anos 1970. É sobre nossa história, nossas feridas, nossa resistência. Seria no mínimo contraditório falar sobre isso numa língua que não consegue carregar toda a complexidade do que significa viver essa experiência brasileira.
E tem outro ponto que me toca muito nisso tudo. Quando Kleber fala em português naquele palco, especialmente "mandando um abraço para todo mundo que está vendo no Brasil, especialmente para Recife, Pernambuco", ele está incluindo a gente na conversa. Ele está dizendo: vocês também fazem parte desse momento. Vocês que estão em casa, vocês que falam a mesma língua que eu, vocês são parte dessa vitória.
A língua é nossa primeira tecnologia de conexão. É ela que nos permite sonhar juntos, chorar juntos, celebrar juntos. Quando a abandonamos nos momentos mais importantes, quebramos essa conexão com quem realmente importa.
Não estou dizendo que devemos ser bairristas ou que não devemos nos comunicar com o mundo. Estou dizendo que podemos fazer as duas coisas. Podemos ser globais sem deixar de ser locais. Podemos conquistar o mundo sem perder nossa casa.
Kleber provou isso de uma forma linda. Ele conseguiu ser aplaudido internacionalmente fazendo cinema em português, sobre o Brasil, com atores brasileiros, contando histórias que são nossas. E, na hora de agradecer, não esqueceu de falar na língua que tornou tudo isso possível.
Nossa língua é nossa casa. E casas boas são feitas para receber todo mundo, inclusive os reconhecimentos mais importantes que a vida pode nos dar.
O cinema é uma linguagem, assim como o português também é. O cinema em português, o nosso português, é uma linguagem que só nós podemos fazer, assim como Kleber e sua equipe fizeram.
Que a gente aprenda com ele a nunca ter vergonha de onde viemos. Que a gente aprenda a carregar nossa origem como uma medalha de honra, não como um peso que precisamos esconder.
Porque no fim das contas, é justamente nossa brasilidade, nossa maneira única de ver e contar o mundo, que nos torna especiais. É isso que o mundo quer ver de nós. É isso que só nós podemos oferecer.
Que orgulho do Kleber, da Emilie, do Wagner, do Lacca e de toda equipe do "O Agente Secreto" que nos fez ser feliz em português ou na língua que quisermos. Que seja apenas o começo!
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